• O político em tempo integral e fã escreve sobre o artista, que hoje faria 100 anos.
Coluna do Ancelmo Gois - O Globo
Como muitos brasileiros de sua geração, o senador José Serra, de 73 anos, é um dos admiradores do cantor Orlando Silva. Trata-se de uma confraria que reúne músicos como João Gilberto e Martinho da Vila, o decano do jornalismo político Villas-Bôas Corrêa e o casal baiano Orlando de Jesus e Maria Vanda, que, em 1971, batizou o filho, o ex-ministro do Esporte, de Orlando Silva, mesmo nome do artista. Aqui, o depoimento, a pedido da coluna, que o notívago Serra deu, às 4h44m, sobre o Cantor das Multidões, que faria 100 anos hoje.
“Na história da música popular brasileira, Orlando Silva foi o intérprete mais idolatrado pelos paulistas. No bairro operário da Mooca, onde nasci e me criei, sua voz encantava as moças e incitava os homens à fantasia de imitá-lo. Na Praça do Patriarca, na segunda metade dos anos 1930, ele protagonizou o maior show musical de rua da História, totalmente improvisado, cantando, da sacada de um prédio, para uma grande multidão. Como as pessoas souberam e foram até lá? Lotaram a praça, as ruas adjacentes e avançaram sobre o Viaduto do Chá. Minha mãe e suas três irmãs estavam na multidão. Eu nasci anos depois, e, desde bebê, ouvia-as comentar e contar sobre o acontecimento. Foi por esse evento em São Paulo que o carioca Oduvaldo Cozzi, o grande locutor de rádio da época, emplacou: Orlando Silva, o Cantor das Multidões.
Nos salões carnavalescos de todo o Brasil, Orlando Silva, que começou a gravar aos 20 anos de idade, em 1935, tornou-se onipresente. As marchas que ele lançou, como “Jardineira” e “Malmequer”, e sambas como “Alegria” — o maior de todos os tempos!: “Minha gente/era triste e amargurada/inventou a batucada/pra deixar de padecer/salve o prazer, salve o prazer”; ou, ainda, o “Abre a janela”: “Abre a janela/ formosa mulher/e vem dizer adeus a quem te adora/depois de te amar como sempre amei/é hora da orgia eu vou-me embora” tornaram-se inesquecíveis. Intrigava-me a palavra “orgia” e, curioso, perguntava às tias o que significava... sem nunca obter uma resposta clara.
Sambas como “Boêmio”, “O homem sem mulher não vale nada”, “Dama do cabaré”, “Lágrimas de homem”, “Atire a primeira pedra” ou “Aos pés da cruz” são obras-primas na letra, na música, no ritmo e na espantosa variedade de timbres da voz de Orlando Silva, poderosa, mas sempre suave, saltando entre graves e agudos de forma fácil e natural. Nesse quesito, “Boêmio”, composição de Ataulfo Alves, é o melhor de todos. Ouçam, por favor. Aliás, ouçam todos os outros.
Nos sambas-canção, valsas e foxtrotes, ele deixou também interpretações incríveis: “Última canção”, “Nada além”, “Naná”, “Dá-me tuas mãos”, “História de amor”, “Uma dor e uma saudade”. O que dizer então de sua interpretação das composições de Pixinguinha e seus parceiros? “Lábios que beijei”, “Carinhoso”, “Rosa”... Ou a obra-prima “Página de dor”, que, de todo o repertório de Orlando Silva, é talvez a mais difícil de ser interpretada.
As antológicas canções de dor de cotovelo masculina chegaram ao ponto máximo com “Súplica”, “Lágrimas”, “Última estrofe”, “Uma saudade a mais”, “Número um”: “Mostrei-te um novo caminho/onde com muito carinho/levei-te uma ilusão/tudo porém foi inútil/eras no fundo uma fútil/e passaste de mão em mão.”
Homens românticos, sempre de alma boa, mas, infelizmente, trouxas, rejeitados e tripudiados por mulheres más.
Devido a um acidente que lhe amputou parte de um pé, Orlando Silva desenvolvera dependência pela morfina. Isso, o álcool e mais o sofrimento de uma paixão tumultuada pela radioatriz mais famosa e bonita da época, Zezé Fonseca, mulher difícil, foram os ingredientes da decadência precoce do artista, cujo início coincidiu com a entrada do Brasil na Segunda Guerra. Sempre fiquei me perguntando como a droga e o sofrimento amoroso puderam cometer o crime de corroer aquelas cordas vocais e a alma que as acionava e modulava.
Orlando Silva deve ter sido mesmo o maior cantor popular de todos os tempos, como disse o qualificadíssimo João Gilberto, endossado por Caetano, Paulinho da Viola, Arrigo Barnabé e outros. Todos tiveram em mente a sua primeira fase, de 1935 a 1942/43. Para conhecê-lo, concentrem-se nas gravações que ele fez nesse período. No resto da década, gravou muito pouco — mesmo assim, lançou um disco em 1945 com uma interpretação genial do clássico de Cole Porter “When they begin the beguine”, na versão brasileira. Voltou à cena nos anos 1950, sem ser mais o mesmo.
Desde criança, eu tinha a mania de decorar as letras e tentar cantar suas músicas. Sempre no âmbito familiar — almoços natalinos e Páscoa —, onde uma das tias cantava belas composições napolitanas, meu avô tocava um stornelllo suplicante da Calábria, e eu vinha com alguma canção de Orlando Silva, no mais das vezes “Meu romance”, que emocionava um casal de tios bem jovens e bonitos: “Debaixo daquela jaqueira/que fica lá no alto majestosa/de onde, se avista a turma da Mangueira/quando se engalana com suas pastoras, formosas.”
Acredite se quiser. Quando eu era líder do PSDB na Câmara Federal, na primeira metade dos anos 1990, por mais de uma vez fechei-me com o Artur da Távola, vice-líder, depois do almoço, numa salinha da liderança, e, cantando baixinho, ficávamos competindo sobre quem sabia mais e melhor as letras de Orlando Silva. Afligi-me depois que ele cantou sem erro nenhum “Coqueiro velho”: “Abatido pelos anos/ninguém sabe os desenganos/que essas folhas descoradas/caídas, vencidas...” Até então, eu me achava o único brasileiro vivo que sabia a letra! Mas ele mesmo proclamou o empate quando mostrei que sabia cantar “Naná”: “Um sonho que se fez mulher.”
Evidentemente, nunca me arrisquei a cantar Orlando Silva em público, não só por timidez e um certo mancômetro, mas também por recear que as pessoas pudessem achar que eu seria tão bom político como cantor...”
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