- Valor Econômico
O comunismo avançou devido à Grande Depressão. Hoje, o nacionalismo populista deriva muito da sua força de uma crise financeira mal administrada e de reações políticas mal conduzidas (e por vezes inexistentes) a mudanças estruturais rápidas
Se 2016 foi o ano em que os opositores da ordem mundial liberal construída ao longo de 70 anos conquistaram vitórias nacionais notáveis - no Reino Unido e nos EUA -, 2017 foi o ano em que os defensores de abertura liberal tiveram dificuldades para se mobilizar. 2018 deverá ser o ano em que os dois campos se enfrentarão. À medida que os governos usam o poder do Estado para seus respectivos campos, as tensões que fervilham em cada país se transformarão num conflito entre nações.
Profundas mudanças econômicas estruturais em quase todos os países ricos separaram, cada vez mais, os que colheram os benefícios daqueles onde concidadãos foram deixados para trás pelas transformações. Na vitória eleitoral do Brexit e de Donald Trump, os autodeclarados campeões dos deixados para trás assumiram o controle da agenda nacional com a promessa de romper com a ordem liberal internacionalista. Em reação, os líderes centristas em outros países - mais explicitamente, Emmanuel Macron na França - tiveram que se definir como defensores dessa ordem.
As instituições da UE e muitos governos europeus, assim como o Canadá e o Japão, formam agora um campo internacionalista firmemente liberal que trabalha no sentido de defender um sistema multilateral de governança baseada em regras colaborativas visando a abertura econômica para vantagens mútuas. O líder indiscutível da frente anti-liberal, por outro lado, são os EUA sob o presidente Trump. O melhor guia quanto a seus objetivos é simplesmente uma leitura de suas declarações: de seu discurso de posse à recente atualização da estratégia de segurança nacional. É um mundo de soma zero em que não pode haver vencedores econômicos sem perdedores, e é cada país por si. Os dois campos querem fazer ou refazer o mundo à sua imagem. Esta não é a primeira vez em que nações inteiras tiveram que escolher em torno de qual ideologia unir forças.
O mesmo aconteceu na década de 1930, e novamente durante a Guerra Fria. Naqueles momentos também, os países alinharam-se segundo divisões ideológicas, em parte motivados por conflitos econômicos e sociais que anteriormente haviam destruído suas políticas domésticas. Como resultado, a batalha transferiu-se para o cenário internacional, onde foi travada por todos os meios, inclusive guerras - diretas ou por intermediários. No seio dos países, o conflito foi até certo ponto reprimido, já que os governos tentaram garantir que o lado escolhido internacionalmente não fosse solapado no plano interno. Para Estados liberais, isso significou diversificados graus de supressão da simpatia com o fascismo ou o comunismo. Nas ditaduras de direita e de esquerda, a supressão de pontos de vista dissidentes foi total.
Não há nenhum sinal de que o realinhamento mundial atual causará guerras entre os campos; e ainda podemos esperar que a violência política no seio das nações possa ser evitada. Mas em outras três arenas a batalha está em curso. Uma delas são as instituições internacionais, em particular as responsáveis pela governança econômica mundial. O governo Trump parece determinado a minar a Organização Mundial do Comércio (OMC), cuja função de arbitragem [os EUA] estão sabotando, frustrando a nomeação de juízes para a comissão de apelações.
Por outro lado, a UE e o Japão estão tentando demonstrar o valor da organização para os interesses dos EUA, apresentando uma frente unida no contexto da OMC contra uma política comercial percebida como abusiva pela China. Outra arena é a construção de alianças. O choque das vitórias isolacionistas acelerou o empenho pelo aprofundamento da ordem econômica mundial existente. A UE concluiu acordos de comércio livre com o Japão e o Canadá e intensificou as conversações com o México, a Austrália e a Nova Zelândia.
Japão e Canadá, além de unirem-se à UE, estão fazendo avançar a parceria TransPacífico com os 11 membros restantes depois que os EUA a abandonaram. Quanto a Trump, ele parece mais ansioso para construir pontes com a Rússia de Vladimir Putin e fazer amizade com os autocratas, das Filipinas à Arábia Saudita, do que fortalecer relacionamentos com aliados ou manter a unidade política da Otan. Na Europa, a Hungria e a Polônia - sobre a Áustria ainda não há uma definição - estão inclinando-se para o campo de Trump.
Paradoxalmente, a arena mais importante para os governos envolvidos numa batalha ideológica mundial continua sendo seu próprio público doméstico. Essa terceira dimensão é decisiva, se considerarmos o que foi a Guerra Fria. O comunismo avançou devido à Grande Depressão, mas, depois, não poderia sobreviver indefinidamente à evidência de que simplesmente não funcionava tão bem quanto o capitalismo liberal-democrático. Hoje, por outro lado, o nacionalismo populista deriva muito da sua força de uma crise financeira mal administrada e de reações políticas mal conduzidas (e por vezes inexistentes) a mudanças estruturais rápidas.
A longo prazo, os liberais têm motivos para esperança: retirar-se da ordem liberal certamente causará danos duradouros aos países onde os isolacionistas estão agora no poder. Mas essa esperança é vulnerável a duas ameaças. Primeiro, se a ordem liberal se esgarçar, os que dela se retirarem primeiro podem levar vantagem. Em segundo lugar, os anti-liberais poderão exibir resultados econômicos no curto prazo por mais tempo do que os liberais poderão permanecer no poder - em parte porque estão livres da fidelidade às políticas convencionais.
Enquanto os conflitos permaneceram domésticos, a cautela era prejudicial, mas sustentável. Num embate mundial ideias, os liberais precisam mostrar com urgência que a ordem existente pode ser colocada a serviço de todos. A década de 1930 e a Guerra Fria viram o liberalismo econômico sobreviver ao tornar-se radicalmente mais progressista do que antes. Chegou a hora para, novamente, tal ousado radicalismo centrista. (Tradução de Sergio Blum)
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Martin Sandbu é analista econômico do FT
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