- O Estado de S. Paulo
O Brasil não é para iniciantes, nem mesmo na área de teoria política. No momento em que o mundo enfrenta a mais grave pandemia em um século, o país tem um presidente negacionista e, ao mesmo tempo, um vice que escreve um longo artigo de opinião citando os Federalistas, isto é, o conjunto de artigos escritos por três políticos que defendiam a importância do governo centralizador durante os debates que levaram à formulação da Constituição dos Estados Unidos.
Curiosamente, o presidente já havia defendido uma concepção de poder, a la “ancien regime”, isto é, o poder monárquico que antecedeu a revolução francesa. Neste breve artigo, vou, em primeiro lugar, mostrar brevemente a concepção de poder de Bolsonaro e, em seguida, tentar responder à seguinte pergunta: qual foi a intenção do vice-presidente não apenas em citar os Federalistas, mas em citar o menos conhecido dentre eles, John Jay, em um texto sobre guerra e conflito entre as nações.
Comecemos do início. Não é claro que Bolsonaro e Mourão tenham formação em teoria política, mas ao longo da grave crise que o país atravessa eles, começaram a explicitar suas concepções de poder.
Assim, Jair Bolsonaro tem cada vez mais se aproximado de uma concepção pré revolução francesa e americana. Depois de participar, no início de abril, de uma manifestação pela intervenção militar e pelo AI-5, o presidente afirmou no dia seguinte: “eu sou a constituição”. Sabemos que incomodam ao presidente as estruturas de pesos e contrapesos que emergiram a partir da revolução americana e com as quais as democracias modernas operam.
De um lado, ele tem saudades de uma estrutura de poder à la “Ancien Régime”, isso é, uma forma de exercício do poder na qual este é pessoal, não apenas para ele mas para os seus familiares. Para quem ainda tinha dúvidas sobre essa concepção o famoso episódio com Sérgio Moro trouxe esclarecimentos adicionais, ao envolver a família do presidente. “A preocupação minha sempre foi, depois da facada, de forma bastante direcionada para a segurança minha e da minha família”, afirmou o presidente.
Mas esta frase tem que ser entendida de modo amplo e não como alguns o fizeram pensando na segurança pessoal. Se Bolsonaro é o estado, como é possível que ele não possa saber de investigações que envolvem os seus filhos. Foi esta a cobrança realizada a Sergio Moro, uma cobrança no interior de uma concepção do antigo regime. Bolsonaro não entendeu que ele é presidente em uma estrutura impessoal de organização dos poderes.
Se não bastasse as referências do presidente ao antigo regime, agora temos uma referência direta aos “Federalistas” por parte do vice-presidente. Os “Federalistas” são uma coleção de 85 artigos escritos com a intenção de convencer os norte americanos sobre a importância da existência de um governo central em um país cuja tradição mais forte era o governo local.. Os principais autores federalistas foram três, James Madison, Alexander Hamilton e John Jay. Esse último, autor de apenas de cinco ensaios dos “federalistas” e o menos influente dos três foi o escolhido para ser citado pelo nosso vice-presidente.
Ainda mais intrigante, o texto citado por Mourão faz parte do Federalista número três e tem o título “Perigo da Influência das Nações Estrangeiras”. Neste pequeno ensaio, John Jay trata subsidiariamente do problema da divisão dos poderes. Ali ele afirma que decisões nacionais seriam mais eficientes do que decisões de uma variedade de cortes locais independentes. Evidentemente, que quando pensamos em teoria da divisão e equilíbrio de poderes e como ela foi tratada pelos federalistas vale a pena lembrar que, em geral, ninguém menciona John Jay. Quem é citado é o ensaio de Alexander Hamilton no qual ele caracteriza o judiciário como sendo o menos perigoso dentre os poderes (the least dangerous branch) aquele que não usa nem a caneta e nem a espada (Federalista número 78). Em uma situação na qual o presidente tem se aproximado do Centrão e fala em intervenção militar seria muito mais adequado citar Hamilton do que um texto isolado de John Jay. Mas não foi este o caminho seguido pelo seu homônimo brasileiro.
O conflito Bolsonaro versus Mourão e entre Mourão, judiciário e governadores não pode se resolver com citações de intelectuais do século XVIII. Mas, alguns princípios ajudariam: o primeiro é reconhecer que o antigo regime terminou faz muito tempo e não podemos voltar a concepções pessoais do poder. Aliás, diga-se de passagem, os mesmos autores citados por Mourão se entenderam em relação à ideia de impeachment que apareceu pela primeira vez na Convenção Constitucional da Filadélfia. Ali, eles justificaram o impeachment enquanto o instituto político capaz de separar o presidencialismo da monarquia e mostrar que o poder presidencial tem limites. Jair Bolsonaro corre o risco do impeachment porque não percebe que poder não pode ser pessoalizado ou familiarizado no regime presidencial.
Mas temos que abordar também as reflexões de Hamilton Mourão em relação aos estados. Ali Mourão cita Amaro Cavalcanti, um político e jurista do final do século XIX que criticou o federalismo brasileiro. É importante apontar que não há qualquer relação entre o problema dos “Federalistas” e aqueles tratados por Cavalcanti. O problema dos federalistas e ao qual John Jay se refere é o da necessidade do governo em um país no qual o governo foi constituído no nível local.
Para os Federalistas, o governo central era fundamental, mas nunca poderia estar em posição de superioridade aos governos locais. Tanto é assim que não existiram dúvidas nos Estados Unidos sobre a quem cabia decretar a quarentena, que foi instituída pelos governadores. Assim, temos um problema diferente no Brasil que é a natureza de cima para baixo do nosso federalismo que é questionado pelos governadores e pelo STF na crise do novo coronavírus.
Foi para combater esta concepção que Hamilton Mourão procurou desenterrar um jurista que tentava dizer ao presidente Prudente de Morais que o verdadeiro federalismo brasileiro era aquele implantado por Floriano Peixoto e os militares, centralista e de cima para baixo. Ou seja, Mourão falou dos federalistas, mas pensou nos positivistas brasileiros. Resta uma dúvida no artigo de Mourão em relação ao nome ali ausente, o do presidente Jair Bolsonaro. O chamado à lei e à ordem e ao federalismo top down foi feito pensando Bolsonaro como presidente ?
*Leonardo Avritzer, professor do Departamento de Ciência Política da UFMG
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