- Valor Econômico
No mundo ao contrário, presidente é um oposicionista
A epidemia provocada pelo novo coronavírus começou a mudar a vida de cada brasileiro há cerca de sessenta dias, quando houve o despertar global para o problema. Foi pouco antes dos meados de março que a Organização Mundial de Saúde, depois de alguma hesitação, decretou a existência de uma pandemia.
O contraste do Brasil com o panorama internacional é gritante. Ásia, Europa e mesmo os países da América do Sul fecharam ou estão na iminência de fechar um ciclo, preparando-se para a provável segunda onda de contaminação da doença. No Brasil, a roda claramente gira em falso. Não há preparação para nada.
A semeadura fraca que justifica colheita tão pobre era sugerida pela leitura de qualquer matutino cerca de dois meses atrás.
Uma grande polêmica no Brasil em 14 de março era sobre o resultado do exame para detectar a doença feito pelo presidente da República. O governador de São Paulo, João Doria, acusava Bolsonaro em entrevista de desrespeitar outros poderes. Epidemiologistas diziam que a única forma do Brasil conter o flagelo era por meio da paralisação das atividades. Faltava um dia para Bolsonaro participar de aglomerações em Brasília que pregavam a ditadura. O conflito entre ele e o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, começaria na semana seguinte.
A América Latina teve o bônus de ser uma das últimas regiões a receber a doença. Até 7 de abril, nenhum país da região havia registrado mais de 300 mortes, ao contrário do que ocorreu nas economias mais desenvolvidas. O Brasil entrou naquela semana com 200 casos e o primeiro óbito de covid-19 só seria confirmado no dia 17. Havia tempo para agir.
Na área econômica houve ação, depois de alguma tergiversação do ministro Paulo Guedes. Ele só tomara plena ciência da gravidade da crise poucos dias antes, em uma reunião no Congresso Nacional, quando o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, traçou um prognóstico sombrio sobre a velocidade do contágio no Brasil e o efeito devastador da doença na atividade produtiva.
O estímulo fiscal para a proteção da economia no Brasil ficou entre 5% e 6% do PIB, um dos patamares mais altos da região, inferior apenas aos do Chile e do Peru, segundo relatório do Banco Mundial. A criação do auxílio emergencial e de medidas de apoio ao empresariado começou ali a ganhar forma, em um ambiente político que claramente tinha e tem outras prioridades. O Congresso aprovou anteontem, por exemplo, com esmagadora maioria e o beneplácito do Palácio do Planalto, aumento salarial para os policiais do Distrito Federal.
Na área propriamente sanitária pouco se fez. A ação coube a cada governador, sem nenhuma concatenação federal. O saldo foi irregular. Em geral, o que houve no Brasil foi uma quarentena mitigada, algo que não foi carne e nem peixe, que interrompeu a normalidade econômica com baixo índice de isolamento social. Diminuiu o número de casos que haveria se nada tivesse sido feito, mas sem a força necessária para apontar uma estratégia de saída.
“Tivemos uma espécie de sofá-cama. Trata-se de um meio termo que é ruim como sofá e ruim como cama, tentando ser os dois ao mesmo tempo”, ironizou Roberto Kraenkel, um físico teórico da Unesp, que se tornou especialista em biologia matemática, com aplicação em epidemiologia.
O que Kraenkel quis dizer é que a descoordenação entre o presidente e os governadores explica a situação brasileira hoje. Uma medida extrema, como o “lockdown” em determinados centros, terá que ter amplitude geográfica restrita e duração curta, porque só poderia ser diferente com apoio e coordenação federal.
A liberação de todas as atividades, como se pandemia não existisse, o que parece ser o desejo de Bolsonaro, não tem guarida entre os governadores, na comunidade científica e na justiça, e não é por outra razão que o presidente se esforça para usar o empresariado como um exército seu, a ser mobilizado para pressionar pelo fim dos controles.
A reunião virtual de ontem entre o presidente e empresários não poderia ser mais ilustrativa disso. Bolsonaro chamou os empresários de “nossos patrões”, mas quem estava tentando dar ordens ali era ele.
A estratégia de saída do isolamento é uma discussão mundial, da qual o Brasil quer participar tendo feito muito menos do que os outros. No mundo ao avesso que existe no país, os governadores estão no centro do combate à pandemia, escorados pelo Supremo Tribunal Federal, e o presidente porta-se como um oposicionista, convocando protestos que beiram a desobediência civil. Quer se sair do descalabro econômico provocado por um isolamento meia-boca com o vírus ainda em circulação.
Caso a vontade de Bolsonaro seja atendida, Kraenkel estima que mortalidade em função da covid-19 chegue com facilidade ao patamar de centenas de milhares de mortes, possivelmente colocando o Brasil em primeiro lugar no ranking mundial de fatalidades. Difícil entender como uma situação dessas irá harmonizar com a retomada da economia, mas aparentemente há empresários que acreditam que a saúde pública é uma questão menor.
Caso Bolsonaro não seja atendido, temos no horizonte um período de isolamento social muito longo, muito mais longo do que poderia ter sido e do que será em outros países onde o presidente de turno não tenha se metido em guerras e operações políticas.
Kraenkel ressalva que se São Paulo, Rio de Janeiro e outros grandes centros tivessem feito “lockdown” em março seria possível ter agora uma estratégia de saída. Nada mais longe disso do que a realidade que se apresenta. Tanto em um caso como em outro, o de Bolsonaro desmontar a aliança entre governadores, Justiça e Congresso ou a de ser emparedado por essa aliança, o Brasil deve figurar como um exemplo internacional de país que fracassou ao enfrentar a pandemia.
Nos aguarda queda recorde do PIB, ou muitos mortos, ou uma combinação das duas coisas. Possivelmente já perdemos essa guerra.
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