sexta-feira, 15 de maio de 2020

Flávia Oliveira - Aos 60 anos, atualíssimo

- O Globo

Folhear ‘Quarto de despejo’ no Brasil do coronavírus é um espanto

‘Quarto de despejo está aí”. A frase breve de Conceição Evaristo, escritora, professora, referência para mulheres negras brasileiras de todas as idades, resume a relevância da obra de estreia de Carolina Maria de Jesus, cujo lançamento completa 60 anos neste 2020. Sexagenário, se rejuvenesce. É livro mais atual que nunca, porque retrata um país incapaz de escapar do círculo vicioso da vulnerabilidade social. A escrita em primeira pessoa, na forma de diário em linguagem crua, denuncia a fome, o trabalho precário, o desemprego, a escassez de serviços e assistência a que favelados brasileiros, como foi Carolina, estiveram submetidos historicamente. E estão ainda hoje, com a sobreposição de crises (sanitária, social, econômica) decorrentes da pandemia de Covid-19.

Conceição Evaristo se juntou virtualmente a Vera Eunice de Jesus, professora e poeta, filha e zeladora da obra e da memória de Carolina, num encontro organizado pela Flup. Foi a primeira edição digital da Festa Literária das Periferias, que tira leitores e autores de onde o mercado editorial só via descampados. Do mesmo território brotou Carolina. Os 60 anos de “Quarto de despejo – Diário de uma favelada” viraram tema do evento que, desamarrado da agenda presencial no Rio de Janeiro, ganhou o país. De todas as unidades da Federação, à exceção de Alagoas, mulheres negras, 485 ao todo, se inscreveram em forma de carta à autora para participar do ciclo de formação do qual sairá, ano que vem, a versão Século XXI da obra.

Na mesa inaugural, Conceição e Vera Eunice passearam por Carolina Maria de Jesus mãe, provedora, escritora, fundadora de um estilo literário: “Foi a primeira escritora brasileira a escrever a partir da experiência pessoal da pobreza. E, ao tentar se apropriar da língua culta, ela tinha projeto literário. Carolina catava papel e catava palavras para fazer literatura”, disparou Conceição Evaristo no discurso que, na véspera do 13 de Maio, libertaria a companheira de ofício das amarras da competência do uso da Língua Portuguesa, privilégio de poucos.

Folhear “Quarto de despejo” no Brasil do coronavírus é um espanto, um choque de realidade. Logo na primeira página, Carolina informa: “Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos generos alimenticios (sic) nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida”.

A data é 15 de julho de 1955. Poderia ser 14 de maio de 2020, quando mães de favelas Brasil afora, desempregadas e sem rendimentos, veem disparar o preço dos alimentos. No mês passado, o IBGE apurou queda de 0,31% no índice oficial de inflação, o IPCA. Foi o menor resultado em 22 anos. Combustíveis ficaram mais baratos em todas as 16 áreas pesquisadas pelo órgão oficial de estatísticas e puxaram para baixo o indicador. Mas a comida, porque as famílias estão ficando mais em casa em razão do isolamento social, disparou: 1,40% em março, 2,24% em abril.

Em 1º de janeiro de 1960, amanhecer de um novo ano, ela avisa: “Levantei as 5 horas e fui carregar agua (Sic)”. Desde que o Ministério da Saúde anunciou a transmissão comunitária da Covid-19 no país e passou a recomendar a higiene das mãos com água, sabão e álcool gel, intensificaram-se as queixas contra a falta de saneamento. No país, um em cada quatro domicílios abaixo da linha de pobreza do Banco Mundial não conta com abastecimento de água por rede geral. Em mais da metade (58%) faltam água, esgotamento sanitário ou coleta de lixo, segundo a Síntese de Indicadores Sociais 2019, do IBGE.

Cebola, batata, feijão, leite, ovos, gás de cozinha, todos mais caros; renda corroída pela recessão já instalada; rede de proteção social insuficiente para conter a vulnerabilidade galopante. Resultado: fome. E ninguém tratou com tanta propriedade da fome real (de alimentos) e metafórica (de vida digna) como Carolina Maria de Jesus em “Quarto de despejo”.

“As geladeiras estão vazias. Entre morrer da pandemia e morrer de fome, o que as pessoas vão escolher? Pobre não tem escolha”, disse Vera Eunice na Flup. “Se a gente fingia que não sabia que a pobreza era marcante, está tudo diante de nossos olhos. A pandemia suspende o tapete e tira a sujeira”, acrescentou Conceição Evaristo, na última terça. Do passado, Carolina arrematou: “E assim, no 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!”. “Quarto de despejo” está aí.

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