- Revista Época
Todos se calaram diante da festa de despautérios que foi a reunião ministerial de 22 de abril. Talvez porque, para os 40 ali presentes, fosse só mais um dia como outro qualquer no governo
A reunião ministerial do dia 22 de abril, aquela em que Sergio Moro afirmou ter sido ameaçado pelo presidente, caso não entregasse a ele o comando da Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro, tem tudo para se tornar um retrato sem retoques do que é o governo Bolsonaro. O que já se sabe do encontro, mesmo antes de seu vídeo se tornar público, é de extrema gravidade. O presidente afirma querer trocar a chefia da Polícia Federal (PF) em seu estado para proteger a família e os amigos.
O ministro da Educação defende a prisão dos ministros do Supremo e a dos Direitos Humanos a dos governadores e prefeitos. O chanceler ataca a China e diz que estamos todos sendo tragados pelo... tchan, tchan, tchan… comunavírus. Poderia parecer um esquete da Escolinha do Professor Raimundo não estivessem todos no terceiro andar do Palácio do Planalto, enquanto do lado de fora o país já contava naquele dia quase 3 mil mortos. Mas o episódio traz ainda outro significado grave. Havia ali pelo menos 40 pessoas — isso é o que mostram os 33 registros que o fotógrafo Marcos Corrêa, da Presidência da República, fez naquele dia.
Ninguém se insurgiu contra essa festa de despautérios. Nem mesmo os ministros tidos como os mais técnicos, a exemplo do titular da Economia, Paulo Guedes; a da Agricultura, Tereza Cristina; o advogado-geral da União e agora na Justiça André Mendonça; ou o controlador-geral da União, Wagner Rosário. Todos se calaram diante de tudo isso. Talvez porque o “tudo isso” seja novo para a sociedade como um todo, mas, para os 40 ali presentes, fosse só mais um dia como outro qualquer no governo.
Um ex-diretor da Polícia Federal se surpreendeu, ao saber do teor do vídeo na semana passada, por Sergio Moro não haver citado nada disso até então. Não há surpresa nisso, entretanto. Moro fez parte desse governo por 16 meses, reuniões como essa aconteciam com certa frequência. Ouvir Abraham Weintraub falar em prender os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) ou Damares Alves defender o mesmo para os demais chefes de Executivo não deve ter sido o primeiro absurdo que presenciara. Para ele, provavelmente, era mais do mesmo. E se calou.
O fato de ser mais do mesmo não isenta ninguém ali. Os chineses, principais clientes do agro brasileiro, terão razão se questionarem Tereza Cristina por que ela se calou ao ouvir os presentes culparem a China pelo coronavírus. Do chanceler Ernesto Araújo, ninguém espera mesmo coerência. Mas a discreta ministra da Agricultura poderia ter ponderado que, em que pesem os erros da ditadura chinesa, culpar os chineses como povo pelo vírus poderia suscitar xenofobia. Mas se calou.
Outros ministros que deveriam estar envolvidos no combate à corrupção, a exemplo de Wagner Rosário e de André Mendonça, poderiam ter se somado a Moro e defendido que Bolsonaro não deveria intervir na Polícia Federal nem proteger familiares e amigos. Mendonça, que torce para ser indicado por Bolsonaro para o STF, poderia ter interrompido Weintraub ao dizer que só ditaduras (nem todas) prendem juízes arbitrariamente. Mas nada disso foi feito. Eles também se calaram.
A reunião como um todo foi tensa. Bolsonaro criticou, de maneira dura, a inércia do governo em evitar que pessoas sejam detidas por circularem durante a pandemia em locais proibidos pelos decretos municipais e estaduais. A crítica foi feita no dia em que familiares do deputado federal Luiz Lima haviam sido detidos pela polícia do Rio de Janeiro por violar as regras da cidade, que impedem o banho de mar neste período. Pedro Guimarães, presidente da Caixa Econômica, interveio nesse momento e, em tom exaltado, disse que, se tentassem prender algum familiar seu numa situação parecida com a que ocorrera com a família de Lima, não aguentaria e iria às vias de fato para impedir.
Atacando João Doria e integrantes do governo Witzel, Bolsonaro defendeu a liberdade de ir e vir das pessoas e disse que, diante da inércia de ministérios nesse período, teria de “entrar” nas pastas e demitir quem fosse necessário para fazer valer sua visão. Era mais um recado para Moro.
O curioso é que nada disso era oficialmente o tema da reunião, convocada para que fosse feita a apresentação do programa Pró-Brasil, que prega a participação do Estado na retomada econômica. Daí a imagem, ao fundo das fotos, da logomarca do projeto, aquela só com crianças europeias. Desenhado por Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, e abraçado pelos ministros da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e das Minas e Energia, Bento Albuquerque, o Pró-Brasil foi alvo da crítica de Paulo Guedes durante a reunião, que já chegara para o encontro irritado. Pouco antes do começo, quando Marinho tentou falar com Guedes privadamente, o chefe da equipe econômica respondeu que não conversaria mais em particular com o colega, só com testemunhas. Tudo já estava tenso antes mesmo de começar.
“A quem interessa esconder tudo isso? Aos ‘patriotas’, segundo o general Augusto Heleno, que foi ao twitter dizer que é um ‘ato impatriótico’ pedir que o vídeo seja tornado público”
“Pleitear que seja divulgado, inteiramente, o vídeo de uma Reunião Ministerial, com assuntos confidenciais e até secretos, para atender a interesses políticos, é um ato impatriótico, quase um atentado à segurança nacional”, escreveu Heleno, na quarta-feira 13.
Na visão torta de patriotismo do ministro, o certo parece ser que os governantes possam, a portas fechadas, ameaçar outras instituições, tramar a privatização da Polícia Federal e, sem compromisso com os fatos, considerar que milhares morrem não por causa de uma doença altamente contagiosa, mas devido a uma terrível orquestração comunista. E que diabo de assunto confidencial é esse, discutido entre 40 pessoas, em meio a assessores de imprensa, fotógrafo, cinegrafista e ajudantes de ordem?
Voltando ao terreno da lógica, o inquérito sob o comando de Celso de Mello já conseguiu concluir que o presidente queria intervir na Polícia Federal no Rio de Janeiro. Há notícia de pelo menos um inquérito em que seu filho, Flávio Bolsonaro, era alvo. Na PF como um todo, havia uma série de interesses outros para fazer o presidente querer ter um amigo como Alexandre Ramagem na direção, alguém que, como ele mesmo disse, dividia com ele seus pães com leite condensado. Os investigadores querem, entretanto, avançar mais na caracterização dos possíveis crimes em que o presidente possa ter incorrido. Não haveria, ainda, certeza para uma denúncia, o que não chega a ser um problema, considerando que há menos de três semanas de inquérito.
Mesmo que do ponto de vista jurídico o encontro do dia 22 ainda não seja a bala de prata para Jair Bolsonaro, politicamente ele foi muito ruim. Coincidentemente ocorrida na data do Descobrimento do Brasil, a reunião escancarou a leniência de seus ministros com o autoritarismo, o descompromisso com a democracia e a falta de respeito à ciência. O silêncio de cada um ali é tudo, menos de inocentes.
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