- Revista Veja
Não há em nenhuma atitude produzida diariamente pela usina de exorbitâncias instalada no Palácio do Planalto resquício sequer de racionalidade
A cada chute dado nos pilares de sustentação do regime em vigor e, por consequência, no governo que preside, Jair Bolsonaro reforça a impressão de que entregou aos desígnios das divindades do imponderável a chance de reeleição. Diz o contrário (“vou sair daqui em janeiro de 2027”), como é de seu costume, mas age justamente na direção da toalha jogada ao chão. Abre todos os flancos imagináveis, anulando qualquer possibilidade de defesa.
A dúvida é se o faz de propósito, já satisfeito de integrar o mais rápido possível o panteão dos ex-presidentes em posição de (desastroso) destaque mundial, ou se é burro mesmo e não se dá conta dos efeitos de seus gestos. A primeira hipótese revelaria alguma inteligência na execução de um plano; a segunda confirmaria uma forte suspeita.
A pessoa desprovida de cognições cerebrais mais ágeis tende a ver seu baixo grau de compreensão como regra geral. Daí decorre a incapacidade de perceber que determinadas atitudes quando aplicadas a situações diferentes não alcançam os mesmos resultados obtidos anteriormente.
O presidente Jair Bolsonaro exibe tais características ao se comportar na chefia da nação como o candidato (elevado ao cubo), acreditando que o que deu certo na campanha teria tudo para dar certo no governo. Na visão dele ainda com mais razão, dado o acréscimo substancioso de capital proporcionado pelos instrumentos de poder. As limitações constitucionais inerentes ao cargo escapam-lhe do radar e, por isso, imagina-se na posse de licença para exorbitar.
Gestos e palavras até aceitáveis em campanhas soam inconcebíveis na Presidência e contraproducentes se a ideia do mandatário for repetir a dose. Caso seja esse o caso é de perguntar com qual objetivo Jair Bolsonaro comete uma série de imprudências. Sem obediência à ordem de entrada em cena, vamos aos exemplos.
Para que firmar aliança com infiéis de carteirinha, representantes do pior que há no Parlamento depois de confrontar-se com a Casa por ele vista como valhacouto da “velha política?” Para que jogar ao mar dois dos ministros mais benquistos, sem razões funcionais objetivas e com claras motivações subjetivas? Para que afastar mais e mais antigos aliados no lugar de tentar reconquistá-los?
“Bolsonaro parece já ter deixado a reeleição ao desígnio do imponderável”
Qual a finalidade de implodir o próprio partido, segunda maior legenda em número de deputados, quando poderia ampliar sua presença e influência para almejar até a conquista da presidência da Câmara? Para que se assumir debochado e mentiroso, afugentando gente que o ajudou a se eleger?
Para que regozijar-se em ser visto pelo mundo como o presidente mais incauto, histriônico, inepto e nocivo à frente de um país democrático? Por que equiparar-se a ditadores se não conta, como eles, com a rede de proteção proporcionada pelo tacão do arbítrio?
Com que finalidade convoca churrascos, passeia de moto aquática, avaliza atos antidemocráticos, incentiva o descumprimento de recomendações médicas, contraria as evidências, zomba dos precavidos em plena pandemia de um vírus ainda desconhecido se, com isso, provoca deserções em seu campo político de ação?
Por que expor ao ridículo com aquela marcha sobre o Supremo Tribunal Federal os poucos que ainda o tratam com boa vontade como o presidente da Corte e empresários reunidos em caravana a Brasília a fim de ouvir do presidente planos e providências para as contingências da crise?
Para que hostilizar governadores e prefeitos, peças essenciais na necessária administração da tragédia em curso e lá adiante atores importantes em ambiente de eleição? Qual o propósito de provocá-los com um decreto para permitir (inutilmente, pois esse tipo de decisão é local) o funcionamento de academias de ginástica e salões de cabeleireiro?
Qual o motivo de esgarçar internamente as Forças Armadas obrigando o Ministério da Defesa a emitir notas em prol da democracia, quando a normalidade constitucional há muito se estabeleceu como ponto pacífico entre os militares? Sujeitá-los à condição de suspeitos de semear ideias golpistas, para quê?
Pois é, não há em nenhuma dessas ou em outras tantas atitudes produzidas diariamente pela usina de exorbitâncias instalada no Palácio do Planalto resquício sequer de racionalidade. Dizia-se que assim Bolsonaro procurava fidelizar seu pelotão mais aguerrido, mas nem isso faz mais sentido diante da fuga de boa parte daquele capital.
Sobra, ante a ausência de plano que denote astúcia, a prevalência da estultícia.
Publicado em VEJA de 20 de maio de 2020, edição nº 2687
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