• A guerra de Bolsonaro – Editorial | O Estado de S. Paulo
Presidente quer fazer crer que o isolamento social, adotado em todo o mundo para conter a pandemia, é escolha, não imperativo
A equipe econômica do governo federal informou na quarta-feira, dia 13, que sua projeção para o Produto Interno Bruto (PIB) deste ano caiu de 0,02% positivo para 4,7% negativos. O dado foi apresentado de forma a enfatizar o caráter dramático da situação e a atribuir o cerne do problema ao isolamento social para enfrentar a pandemia de covid-19. Segundo informou o Ministério da Economia, o PIB perde R$ 20 bilhões por semana em razão do isolamento.
Embora tenha negado que estivesse fazendo críticas à adoção da quarentena, o secretário de Política Econômica, Adolfo Sachsida, disse, ao apresentar os números, que o objetivo era “deixar claro para a sociedade o custo das decisões” e mostrar que, “quanto mais semanas ficarmos em distanciamento social, maior será o número de falências e de desemprego e maior será o impacto de longo prazo”.
Ato contínuo, na manhã seguinte, o presidente Jair Bolsonaro informou aos brasileiros que há uma “guerra” em curso no País, em referência ao isolamento social determinado por autoridades estaduais e municipais. “O que está acontecendo parece uma questão política, tentando quebrar a economia para atingir o governo”, disse Bolsonaro, em seu dialeto peculiar.
Ou seja, o governo parece ter unificado o discurso em torno da narrativa segundo a qual o Brasil está à beira do precipício econômico e social não em razão da pandemia, que está arrasando mesmo países desenvolvidos, mas sim graças ao isolamento social – que, conforme Bolsonaro, é resultado de um imenso complô da oposição, em conluio com a imprensa e com o Judiciário, para sabotar sua administração.
Para essa “guerra” em defesa de seu governo e, por extensão, do País, Bolsonaro convocou os empresários a pressionar o governador de São Paulo, João Doria, a relaxar a quarentena no Estado. “Um homem está decidindo o futuro de São Paulo, o futuro da economia do Brasil. Os senhores (empresários), com todo o respeito, têm de chamar o governador e jogar pesado, porque a questão é séria, é guerra”, disse o presidente, que, prevendo “caos” social, arrematou: “O Brasil está quebrando. E depois de quebrar, não é como alguns dizem, que a economia recupera. Não recupera. Vamos ser fadados a viver num país de miseráveis, como alguns países da África Subsaariana”.
Assim, o presidente Bolsonaro quer fazer crer que o isolamento social, adotado em todo o mundo para conter a pandemia, é uma escolha, e não um imperativo – e essa escolha, aqui no Brasil, seria fruto de maquinações políticas. Ora, é um insulto à inteligência presumir que chefes de Estado ao redor do mundo estejam submetendo seus governados a privações desnecessárias. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, estima que 9 das 11 principais economias do mundo terão retração econômica severa e, em vários casos, sem precedentes. O Unicef (Fundo da ONU para a Infância) prevê que o colapso do sistema de saúde aumentará em 1,2 milhão de crianças a conta da mortalidade infantil no mundo nos próximos seis meses. O empobrecimento planetário já é uma realidade – que fica particularmente dramática em países cujos governantes, como Bolsonaro, agem de maneira irresponsável.
Se o presidente estivesse realmente preocupado em mitigar os múltiplos efeitos da pandemia, travaria uma guerra não contra os governadores e contra a oposição, e sim contra o vírus – que, por ora, está em grande vantagem, graças à bagunça que Bolsonaro criou no Ministério da Saúde, incapaz de liderar os esforços contra a pandemia, e ao comportamento do presidente, que continua a desdenhar das mortes, estimulando os brasileiros a ignorar a quarentena.
Nesse seu prélio delirante, Bolsonaro chegou até a citar uma frase de Napoleão, “enquanto o inimigo estiver fazendo um movimento errado, deixe-o à vontade”, para dizer que “o movimento errado é se preocupar apenas e tão somente com a questão do vírus” – e quem ganha com isso, disse o presidente, é “a esquerda”, que “está quietinha”.
Se quisesse realmente se inspirar em Napoleão, o presidente Bolsonaro deveria buscar outra frase do general francês, aquela que diz que “o verdadeiro líder é um mercador de esperanças”. Algo praticamente impossível para um presidente cuja vocação é frustrá-las.
• Lei da selva e comércio global – Editorial | O Estado de S. Paulo
Mudança na OMC pode dar espaço à política truculenta de Donald Trump
Os danos a uma ordem global com sinais de civilização, embora muito imperfeita, poderão ser mais duradouros que os males causados pelo novo coronavírus, se prevalecerem os inimigos do sistema multilateral. O risco se torna mais claro e mais próximo com a decisão do embaixador Roberto Azevêdo de abandonar a chefia da Organização Mundial do Comércio (OMC). Depois de matar muita gente e jogar a economia numa crise talvez sem precedente, a pandemia deverá arrefecer. Além disso, há esperança de uma vacina para aumentar a segurança geral. Mas até a cooperação em questões de saúde poderá ficar mais difícil, nos próximos anos, se os pregadores do populismo nacionalista, liderados pelo presidente americano, Donald Trump, impuserem a lei da força na vida internacional.
Roberto Azevêdo anunciou quinta-feira a intenção de deixar a direção-geral da OMC em 31 de agosto, um ano antes de completar seu segundo mandato. O objetivo, segundo afirmou, é facilitar a reforma da entidade, a escolha de seu sucessor e a preparação da conferência ministerial – realizada a cada dois anos – prevista para o fim de 2021. Essa reunião, com o novo diretor-geral já no posto, poderá ser crucial para o futuro da organização.
O atual diretor deixará a função depois de um longo e severo desgaste, promovido principalmente pela tentativa do presidente Donald Trump de impor seus critérios à OMC. Por causa dessa pressão, a entidade nem sequer tem condições, há muitos meses, de cumprir uma de suas funções básicas, a solução de conflitos por meio da aplicação de normas internacionais de comércio. O governo americano boicotou, sem disfarce, a nomeação de juízes para ocupar as vagas abertas no Órgão de Apelação.
O desgaste cresceu com o prolongado conflito comercial entre Estados Unidos e China, resultante basicamente de restrições criadas no lado americano. Além disso, o presidente Trump estendeu suas ameaças à União Europeia, ampliando as áreas de tensão, e impôs barreiras protecionistas a vários outros parceiros, incluído o Brasil. O presidente Jair Bolsonaro absteve-se pelo menos de aplaudir essas medidas, mas aceitou quase sem reação as agressões comerciais decididas por seu guru.
Eleito em 2013, o diretor-geral Roberto Azevêdo logo desistiu de concluir as negociações, muito emperradas, da Rodada Doha, iniciada no fim de 2001. Tentou seguir um caminho menos ambicioso e mais pragmático, favorecendo a busca e a aplicação de acordos sobre facilitação de negócios, eliminação de subsídios a exportações agrícolas, ampliação de oportunidades para economias em desenvolvimento e difusão de tecnologia da informação.
Com a pandemia, o trabalho ficou especialmente difícil. Isoladamente ou em coordenação com o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial da Saúde, a OMC batalhou para manter dinâmico o mercado de alimentos e para evitar entraves a exportações de produtos essenciais ao enfrentamento do surto do novo coronavírus.
As ações de Trump correspondem a seu discurso habitual contra a globalização e o multilateralismo. Não se destinam a fortalecer e a tornar mais equitativo o sistema de comércio, mas a impor seus critérios ao mundo. Mas a bandeira de Trump, saudada por seguidores como o presidente Bolsonaro, representa, antes de mais nada, um equívoco desastroso.
A criação da OMC, em 1995, foi desdobramento de uma política formulada muito antes de se falar de globalização. Em 1941, reunidos num navio, o presidente Franklin Roosevelt e o primeiro-ministro Winston Churchill assinaram a Carta do Atlântico, um roteiro moral e político para a guerra, então no começo, e para a paz ainda distante. Um dos oito itens da Carta resumia o compromisso de apoiar o acesso de todos os países, em condições equitativas, aos benefícios do comércio e da prosperidade. A evolução do sistema depois da guerra foi uma longa e complicada tentativa de materializar esse objetivo. Mas a Carta foi assinada por Churchill e Roosevelt, sem consulta a qualquer exemplar da espécie de Trump e assemelhados.
• A necessária voz da academia – Editorial | O Estado de S. Paulo
Universidade indiferente à política não seria universidade
Não cabe à academia ser feudo de grupos político-partidários, o que infelizmente já ocorreu, no passado, em alguns espaços universitários. Mas a academia é e deve ser sempre espaço de debate político. E essa afirmação não tem rigorosamente nenhum caráter controvertido. Ela é consequência necessária da própria essência da universidade, que é ser um espaço livre de estudo, pensamento e pesquisa.
Sem liberdade, não pode haver verdadeiro estudo, pensamento ou pesquisa. E nenhum desses três aspectos da academia pode existir sem uma profunda conexão com a realidade. Em outras palavras, uma universidade indiferente à política e aos rumos do País teria deixado de ser universidade. Teria abdicado de sua identidade.
Por isso, a academia, necessariamente aberta e plural, não pode ficar alheia à escalada de ameaças e afrontas à Constituição e às instituições por parte do presidente Jair Bolsonaro. Essa participação cívica não tem nenhuma relação com ser de esquerda, centro ou direita, progressista ou conservador. Tem a ver com a preservação de um bem maior: a liberdade. Toda universidade deve compreender e estimular a diversidade, acolhendo as várias linhas ideológicas. O envolvimento da academia com a vida política do País – especialmente em momentos como o atual, em que o presidente da República faz contínuas provocações contra o Estado Democrático de Direito – é, repita-se, corolário de sua própria missão, como espaço de liberdade.
Nessa abertura à política e aos acontecimentos políticos, a academia tem a dar ao País uma contribuição decisiva, ajudando a identificar com acuidade os fenômenos, a relacionar suas diferentes causas e a alertar para suas consequências. Com sua pluralidade de visões e paradigmas teóricos, a universidade deve contribuir para que a sociedade tenha um olhar mais profundo sobre o tempo presente. O rigor científico nada tem a ver com aprisionar a academia no mundo pretérito. Isso significaria privar o contemporâneo daquilo que justamente pode ajudar a desvelar o seu sentido, seria privá-lo do contato com esse espaço livre de estudo, pensamento e pesquisa, que é a academia.
Os autoritários, seja qual for a cor de sua bandeira ideológica, sempre perseguem e tolhem a academia. Quando a universidade cumpre o seu papel de diálogo, debate e pesquisa – cujos resultados sempre iluminam as muitas facetas da realidade –, é muito mais difícil implementar os intentos liberticidas.
Mas a contribuição da academia à política do País não se resume a olhar o presente. O seu compromisso é também com o futuro. Enquanto espaço livre de estudo, pensamento e pesquisa, a universidade deve debater e propor soluções para os problemas nacionais. Basta ver, por exemplo, como o debate sobre política econômica, no mundo inteiro, é profundamente moldado pelas escolas econômicas nascidas na academia. Ao realizar sua missão acadêmica, a universidade está necessariamente envolvida com a construção do futuro.
Por isso, não pode haver omissões ou negligências da academia diante de ameaças que podem ter consequências muito além da geração atual. A história é abundante em exemplos nesse sentido. Com a liberdade, a democracia e o Estado Democrático de Direito não se brinca.
Em tempos de desinformação, quando se distorce e manipula a realidade e se abusa das fake news, é ainda mais fundamental o papel da ciência, produzida na academia. Sem o mundo intelectual atento ao desenrolar dos fatos e acontecimentos políticos, uma sociedade estaria à mercê dos que fazem pouco-caso da inteligência e da liberdade alheia.
As ciências humanas têm uma proximidade conatural com o fenômeno político. Com a política sendo muitas vezes o seu imediato objeto de estudo, professores e alunos dessas áreas têm, a partir de sua própria ciência, muito a dizer neste momento. A academia não pode ter áreas fechadas ao mundo, alheias à política. A pandemia da covid-19 evidencia o muito que a ciência pode e deve contribuir com a política.
Ancorada em sua ciência, a academia tem muito a dizer sobre as ameaças e afrontas do presidente Bolsonaro. A universidade é esteio de liberdade.
• Teses de Bolsonaro não correspondem aos fatos – Editorial | O Globo
Pesquisas científicas e estudos sobre a Gripe Espanhola nos EUA derrubam bandeiras do presidente
O aumento de intensidade da dinâmica da crise reforça traços negativos da personalidade do presidente, como uma convicção extrema mesmo que os fatos estejam contra ela. Se Bolsonaro conseguisse absorver novas informações a partir da observação e da constatação de que cometeu equívocos, e se corrigisse, como a maioria das pessoas, seria um ganho enorme para todos. A fixação, por exemplo, que ultrapassa a teimosia e se aproxima da obsessão, no suposto efeito benéfico da substância hidroxicloroquina para o enfrentamento da Covid-19, já teria sido deixada para trás caso o presidente desse atenção aos diversos estudos científicos já divulgados que afastam esta possibilidade.
Outro assunto que oblitera a capacidade de Bolsonaro de absorver opiniões em contrário é o isolamento social. Desde março, quando começaram a ser registradas oficialmente no Brasil as primeiras vítimas do vírus Sars-CoV-2, Bolsonaro teria tido tempo de não apenas se informar sobre os efeitos do “isolamento social horizontal” — para todos, exceto trabalhadores de setores essenciais — e do “vertical” — apenas para os grupos de risco, como ele deseja. Saberia, por experiência concreta de outros países, que em epidemias o isolamento ao extremo das pessoas é vital para conter a disseminação do vírus. Por um motivo fácil de entender: para que os sistemas de saúde tenham condições de se preparar para atender os contaminados.
Mesmo que o número de infectados venha a ser o mesmo no final da epidemia, todos poderão ser atendidos, o que significará um número menor de mortos. Ao passar ontem pelo cercadinho da claque bolsonarista na saída do Alvorada, Bolsonaro repetiu o mantra: defendeu a cloroquina e desfiou um aterrorizante discurso contra o isolamento social adotado por governadores, a serem provavelmente seguidos por lockdowns (bloqueios). O presidente previu mortes pela fome, devido à suposta liquefação do sistema produtivo, provocada por este combate à epidemia. Em uma live com empresários, o presidente adotou o mesmo tom, chegando a falar em “guerra”.
Também aqui, Bolsonaro se recusa a aprender com cientistas e a História. Estudo bastante citado de economistas do Banco Central americano, Fed, do BC de Nova York e do Massachusetts Institute of Technology (MIT), Sergio Correa, Stephan Luck e Emil Verner, prova que, entre 43 cidades americanas, as que adotaram o isolamento social amplo na Gripe Espanhola (1917/18) recuperaram suas atividades de maneira mais rápida e consistente.
Outra fantasia bolsonarista é a forma com que a Suécia enfrentou o coronavírus. Bolsonaro elogia o país. Não se informou dos efeitos do isolamento frouxo da Suécia: morrem bem mais suecos do que vizinhos nórdicos. O índice de mortes por Covid por milhão de habitantes da Dinamarca está entre 50 e 100; e os da Finlândia e Noruega, abaixo de 50. Os três países praticam lockdowns. Na Suécia, acima de 300, o que tem prejudicado os negócios, ao contrário do que acha Bolsonaro. Só a ideologia pode explicar tanta desinformação.
• Hospitais federais do Rio falham na preparação para o óbvio: a Covid-19 – Editorial | O Globo
Escolhido como referência para a doença, Bonsucesso tem déficit de funcionários e equipamentos
Uma das características da pandemia do novo coronavírus é a capacidade de escancarar mazelas com que o país convive há anos, mas cujas soluções são adiadas indefinidamente. Um desses exemplos é a precariedade dos hospitais federais do Rio. Não que as redes municipal e estadual de saúde sejam melhores — o vírus da inépcia administrativa contamina unidades dos três níveis de governo —, mas, ao menos, elas se prepararam minimamente para um caos previsível.
Escolhido como unidade federal de referência para a Covid-19 no Rio, o Hospital de Bonsucesso precisa de socorro urgente. Embora o Ministério da Saúde tenha prometido 177 leitos para tratamento de doentes com o novo coronavírus, apenas parte desse total está disponível. A incúria administrativa se revela em cada detalhe. Embora tenha leitos, inclusive com respiradores, não há pessoal para operá-los, o que deixa ociosa parte das instalações, situação inadmissível no atual cenário. Funcionários têm denunciado que faltam também equipamentos de proteção individual, fundamentais para evitar a contaminação dos profissionais.
A situação é tão inusitada que levou a juíza Carmen Silvia Lima Arruda, da 15ª Vara Federal do Rio, a determinar a troca da direção do hospital, devido à omissão no enfrentamento da pandemia. Ordenou também que os outros cinco hospitais federais no Rio abram leitos para a Covid-19 — decisão que já deveria ter sido tomada pelo Ministério da Saúde. No dia 5, o desembargador Marcelo Pereira da Silva, do TRF2, suspendeu a substituição da cúpula da unidade, alegando necessidade de mais tempo para analisar a questão.
Infelizmente, hospitais federais que já foram referência na saúde do Rio têm chamado a atenção ultimamente mais pelos deslizes. Em janeiro do ano passado, enquanto o Hospital de Bonsucesso enfrentava déficit de pessoal e falta de equipamentos, a então diretora Luana Camargo da Silva promovia uma festinha de R$ 150 mil, com serviço de bufê em tendas climatizadas, para comemorar os 70 anos da unidade. O que gerou protesto de funcionários e, posteriormente, a sua exoneração.
É evidente que os muitos e complexos problemas dos hospitais federais do Rio não seriam resolvidos a toque de caixa. Mas prepará-los para atuar na pandemia era o óbvio a ser feito. Especialmente por serem administrados pelo Ministério da Saúde, que coordena o combate à Covid-19 no país. Não há desculpas para falta de funcionários e equipamentos, em se tratando de calamidade pública, em que contratações podem ser feitas emergencialmente. Com a capacidade de seu corpo técnico e um mínimo de planejamento e gestão — o que parece ter sido ignorado pelo governo —, esses hospitais poderiam estar salvando muitas vidas.
• Rever o rodízio – Editorial | Folha de S. Paulo
Com bom senso, SP deve repensar a restrição a carros, como fez em outros casos
Teve início pouco alvissareiro o megarrodízio de veículos implementado na cidade de São Paulo a fim de conter a epidemia de Covid-19.
Em vigor desde segunda (11), a medida busca reduzir pela metade a frota paulistana em circulação. Para tanto, expandiu-se para toda a metrópole o controle de automóveis, que passou também a valer durante o dia inteiro.
Num momento em que o índice de distanciamento social na capital vinha rondando insuficientes 50%, a premissa era que a radicalização do rodízio reduziria os deslocamentos pessoais.
Não é o que tem ocorrido. À esperada redução do tráfego correspondeu um aumento substancial do uso do transporte público.
Segundo a prefeitura paulistana, cerca de 1,5 milhão de automóveis deixaram de transitar e os congestionamentos reduziram-se a poucos quilômetros. Por outro lado, as linhas de ônibus da capital registraram de 135 mil a 270 mil usuários a mais nos primeiros dias, e trens e metrô, uma demanda até 15% superior, ante a semana anterior.
Pior, o índice de distanciamento social manteve-se praticamente inalterado, perfazendo meros 47% na terça-feira (12).
A maior concentração de pessoas no transporte público se torna um facilitador para a transmissão do vírus, dado que o ambiente favorece aglomerações e conta com renovação de ar mínima.
Tamanha migração para os meios coletivos sugere que parte considerável dos deslocamentos atuais não se dá por motivos supérfluos, mas por real necessidade. O desconhecimento da prefeitura sobre a natureza da circulação na cidade deixa patente ainda a falta de estudos para embasar a medida.
Essa razão foi invocada pelo Ministério Público em parecer que defende a suspensão do ato. Com o mesmo propósito, ao menos dois vereadores da capital ingressaram com ações negadas pela Justiça.
Entretanto o prefeito Bruno Covas (PSDB) deve ter o bom senso de rever o rodízio —como já procedeu em outras iniciativas na crise. Foram os casos das decisões de bloquear avenidas, na semana passada, e de reduzir a frota de ônibus, no início da quarentena.
As alternativas, de todo modo, vão se esgotando, a despeito dos esforços municipais. Cerca de 85% dos leitos de UTI reservados para o tratamento de pacientes com Covid-19 estão ocupados na Grande São Paulo, e a capital se mantém longe de atingir os almejados 70% de distanciamento social.
Cresce, assim, o risco de um confinamento mais radical, de enormes custos sociais e econômicos.
• Opaco e aviltante – Editorial | Folha de S. Paulo
Bolsonaro falta com transparência e seriedade ao tratar de cartões ou sua saúde
Com a costumeira fanfarrice, Jair Bolsonaro prometeu há nove meses revelar suas despesas pessoais pelo cartão corporativo a que tem direito na condição de presidente.
“Eu vou abrir o sigilo do meu cartão. Para vocês tomarem conhecimento de quanto gastei de janeiro até o final de julho. OK, imprensa?”, anunciou, em 8 de agosto do ano passado. “Vou com vocês, na boca do caixa, digito a senha e vai aparecer todo meu gasto.”
Também como de hábito, a encenação de valentia —em resposta, na época, a alguma fofoca de rede social— deu em coisa nenhuma.
A bravata foi convenientemente esquecida, e os dispêndios realizados por meio do mimo presidencial permaneceram incógnitos mesmo quando o Supremo Tribunal Federal, em 7 de novembro, considerou inconstitucional um dispositivo do regime militar que permitia à Presidência manter segredos do gênero.
Desta vez, o Planalto se viu forçado a apresentar alguma explicação formal —alegou-se, com base em outra legislação, que informações passíveis de pôr em risco a segurança do presidente e seus familiares devem ficar reservadas.
Mas Bolsonaro decidiu voltar ao tema no desvairado pronunciamento de 24 de abril, quando respondeu a acusações de ingerência na Polícia Federal. No esforço para mostrar sua probidade, alegou não haver feito uso de um cartão, entre três que possui, que lhe permite gastar R$ 24 mil mensais.
A veracidade da afirmação não pode, infelizmente, ser aferida. Os dados disponíveis permitem constatar, porém, que as despesas com cartões presidenciais cresceram na atual gestão e chegaram ao recorde de R$ 1,9 milhão em fevereiro —do qual R$ 739 mil, segundo o presidente, com o resgate de brasileiros na China. Mais não se sabe.
As desculpas oficiais para a permanência do segredo soam tão inconvincentes hoje como em 2008, quando uma farra no uso de cartões gerou escândalo no governo Lula (PT). Tratando-se de Bolsonaro, a recusa à transparência se une à conduta aviltante.
Assim se viu também na ridícula saga da divulgação dos exames do chefe de Estado para a Covid-19, enfim levada a cabo por determinação do Supremo Tribunal Federal, a pedido do jornal O Estado de S. Paulo. Soube-se então que o presidente chegou ao cúmulo de usar pseudônimos nos testes, cujos resultados foram negativos.
De claro no episódio, apenas a irresponsabilidade de Bolsonaro ao sujeitar a si e a terceiros aos riscos de contágio, antes e depois de conhecer seu estado de saúde.
• Populistas fazem muito mal à saúde – Editorial | Valor Econômico
Já há a certeza que o coronavírus não irá embora de uma vez, nem a economia global se recuperará rapidamente
O Brasil vem escalando a curva global de contágio e mortes provocados pelo coronavírus. Aproxima-se da companhia de países cuja característica comum foi o desprezo dos governantes sobre a letalidade e capacidade de disseminação do vírus, em primeiro lugar os EUA de Donald Trump, país com o maior número de mortes - a caminho das 90 mil - e de infectados, mais de 1,3 milhão. Agiram irresponsavelmente, como Boris Johnson, premiê do Reino Unido (33 mil mortos), e o prefeito de Milão, com seu fúnebre slogan “Milão não fecha” - fechou depois de abrir a rota para o vírus, que se espalhou pela Lombardia e resto do país, deixando 31 mil mortos.
O Brasil acumulava até quarta-feira 13.149 mortos e 189 mil contaminados, com aceleração do número de novos casos. O país vai mal perto de vizinhos, como a Argentina, que implantou quarentena severa e fechou rapidamente suas fronteiras. Mas a comparação das curvas com os países mais atingidos, como Itália, Espanha, Reino Unido e EUA mostra que a curva da destruição do vírus foi sim achatada - nos países da comparação, o contágio e o número de vítimas cresceu muito e mais rapidamente.
O uso do isolamento como tática para aliviar o precário sistema de saúde brasileiro não veio muito tarde, e foi adotado, com maior ou menor intensidade, pelos governadores. Mas o país não escapou às consequências de uma divergência fatal entre o presidente Jair Bolsonaro e os Estados.
Como Trump, Bolsonaro acredita que sabe tudo, ouve muito pouco outras opiniões e só respeita a família - o presidente dos EUA aconselha-se mais com a filha Ivanka e o genro, Jared Kushner. Ambos desdenharam o perigo do coronavírus - Bolsonaro nega até hoje. Trump refutou relatórios de inteligência apontando existência do novo vírus desde janeiro, que “um dia, como um milagre, desapareceria”. Hoje, os EUA empilham 1500 cadáveres por dia, um terço de todos os mortos nos 190 países afetados pela pandemia.
A divisão no combate à pandemia foi um desastre e facilitou a propagação da doença. Pesquisa recente mostrou que o isolamento arrefeceu nos redutos bolsonaristas quanto mais o presidente invectivava contra o isolamento, pela volta ao trabalho. E Bolsonaro se supera a cada dia. Dispensou o ministro da Saúde em plena aceleração do contágio, misturou-se a multidões de admiradores e ainda tenta deter o trabalho dos governadores, após ter sido dissuadido pelo entendimento do STF de que prefeitos e governadores estão em suas atribuições legais e que o Executivo não pode revogar as medidas sumariamente.
Bolsonaro encontrou novo meio de boicotar o isolamento ao decretar a cada dia novos setores como “essenciais” - incluiu nessa categoria salões de beleza e academias de ginástica. Sequer se dignou a comunicar isso a seu ministro de Saúde, Nelson Teich Ontem, o presidente reuniu-se com empresários e pediu que pressionassem os governadores pela volta ao trabalho.
O resultado das atitudes bárbaras de Bolsonaro, de seus aliados e de alguns governadores irresponsáveis, que não reforçaram o isolamento, é que, dois meses após a aparição dos primeiros casos, capitais importantes como Manaus, Belém e Fortaleza estão em lockdown. Em São Paulo, onde governador e prefeito da capital fizeram a coisa certa, o isolamento começou a ser desrespeitado e também não se descarta medidas severas no futuro próximo.
Assim, o isolamento não foi vigoroso o suficiente para obter um ritmo ótimo para o contágio, mas foi forte o bastante para nocautear a economia. Isso não se deve só às mazelas políticas, mas também à desigualdade e pobreza do país, no qual dezenas de milhões de pessoas vivem da mão para a boca, com o que conseguem ganhar no dia. A precária situação do sistema de saúde pública, já insuficiente para atender a demanda normal por atendimento, torna-se insustentável em uma pandemia, apesar de seus profissionais fazerem o impossível com parcos recursos.
A incompetência pública, agravada pela estupidez do presidente, deixou o país sem capacidade para fazer testes, algo essencial para sair da pandemia. Já há a certeza que o coronavírus não irá embora de uma vez, nem a economia global se recuperará rapidamente. É pouco provável que uma vacina esteja disponível em menos de 12 meses. O Brasil improvisa à beira do precipício, com um presidente que não faz a coisa certa nem para de atrapalhar. Como tragicamente se vê, populistas fazem muito mal à saúde.
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