- Folha de S. Paulo
Uma estratégia voltada a corroer o Estado de Direito e a Constituição
Nas últimas três décadas, formou-se um certo consenso entre economistas, cientistas políticos e juristas de que as instituições importam para o desenvolvimento econômico e político das sociedades, uma vez que podem contribuir para estabilizar expectativas, incentivar a cooperação entre adversários e restringir o oportunismo e a violência.
Quando bem concebidas são capazes, inclusive, de transformar vícios privados em bem público. É o caso do sistema de freios e contrapesos, onde a ambição e mesmo a vaidade daqueles que ocupam postos no parlamento e nos tribunais contribuem para colocar limites e controlar aqueles que, no governo, têm a espada e a bolsa a seu dispor.
Isso não significa que as pessoas sejam menos importantes, pois, no final do dia, elas é que operam as instituições. Por melhor que seja o desenho de uma determinada instituição, se ela for ocupada por pessoas incompetentes ou avessas às suas funções e finalidades, tendem à inoperância e deterioração.
Impedido pelo jogo institucional de criar um regime autocrático por meio da alteração de leis e dispositivos constitucionais, como ocorreu na Hungria, na Turquia, na Polônia e mesmo na Rússia e na Venezuela, o atual governo tem investido em subverter a ordem constitucional pela nomeação de autoridades incompetentes e/ou dispostas a comprometer e sabotar as instituições sob o seu comando.
Trata-se de montar uma espécie de gerigonça autocrática, voltada a corroer o Estado de Direito e inibir a eficácia da Constituição.
A decisão do Ministério da Justiça de promover uma investigação de natureza meramente intimidatória e destituída de qualquer fundamentação legal em relação a "policiais antifascistas", que se abateu também sobre intelectuais que se notabilizam pela defesa da democracia, como Paulo Sérgio Pinheiro e Luís Eduardo Soares, é mais um exemplo desse percurso parainstitucional que vem sendo trilhando de forma sistemática pelo governo.
Nessa toada, ministérios como o da Saúde, do Meio Ambiente, da Justiça e dos Direitos Humanos, além de outras esferas voltadas à implementação e proteção de direitos na administração, vão se transformando em verdadeiras ameaças à vida, à saúde e às liberdades das pessoas, à integridade de populações indígenas ou à preservação do meio ambiente.
Não ultrapassamos nesta semana a assustadora marca de 90 mil mortes relacionadas à pandemia ou quebramos recorde de queimadas, letalidade pela polícia ou invasão de terras indígenas, por mero acidente. São conquistas de um (des)governo obcecado em ocupar e emascular as instituições democráticas.
Avesso que foi à prepotência, à intolerância e a todas as formas de injustiça, não espanta que Ranulfo de Melo Freire tenha nos legado a sua ausência neste momento em que sobeja a boçalidade, dentro e fora dos tribunais.
Nos estertores do regime militar, fez da 5ª Câmara Criminal do antigo Tribunal de Alçada Criminal, ao lado de Alberto da Silva Franco e um seleto grupo de desembargadores, um oásis de proteção de direitos. Saiu dali para ajudar José Carlos Dias na difícil tarefa de humanizar as prisões; missão que nunca abandonou, como registra Marcos Fuchs do Instituto Pro Bono.
Ranulfo era um minimalista. Convidado a dizer algumas palavras em tributo a seu amigo Antonio Angarita —outro extraordinário— na FGV, foi ao púlpito e apenas sorriu. Estava feita a maior das homenagens. Ranulfo é a prova de que, sobre todas as coisas, as pessoas importam.
*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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