- O Estado de S.Paulo
Dado que nossos problemas já estão mapeados, seria vergonhoso bater no iceberg
“Near, far, wherever you are, I believe that the heart does go oooooooonnnnnnn...”
Impossível ouvir a canção brega de Celine Dion sem se lembrar de destroços espalhados pelo mar, Kate Winslet tiritando sobre um bloco de gelo e, ao fundo, o que restou do Titanic – navio que, por inabilidade de seus comandantes, bateu num iceberg matando mais de 1.500 pessoas.
Países, como navios, têm cartas de navegação. Elas precisam ser renovadas de tempos em tempos para evitar os icebergs do caminho. Dois desses mapas acabam de chegar ao debate público. Um deles se chama “Unidos pelo Brasil”, e foi elaborado no âmbito do Centro de Liderança Pública, organização suprapartidária dirigida pelo cientista político Luiz Felipe d’Ávila. O outro, “Uma agenda econômica pós-pandemia”, foi escrito por professores do Insper, sob a coordenação de Marcos Lisboa, presidente da escola.
Vale conhecer os projetos em detalhe. O texto do CLP traz um diagnóstico do momento atual e propõe uma agenda de curto prazo: 28 pautas prioritárias no Congresso, focadas em combate à desigualdade, crescimento sustentável e reformas estruturais. O documento do Insper se aprofunda sobre o que o Estado brasileiro tem de disfuncional. Na primeira parte já concluída – haverá outras – o texto propõe medidas concretas em áreas como proteção social e tributação. Lisboa e d’Ávila, coordenadores dos dois estudos, são personagens dos minipodcasts da semana.
Não faltam cartas para navegar o Brasil. Além dessas duas, elaboradas em pleno maremoto da pandemia, um documento publicado em janeiro deste ano vem sendo calorosamente debatido entre políticos e líderes da sociedade civil: “Estado, desigualdade e crescimento no Brasil”, do economista Armínio Fraga. Tornaram-se já clássicos um estudo do Banco Mundial de 2017, “Um ajuste justo”, e “Política econômica e reformas estruturais”, produzido no âmbito do governo Lula, sob a coordenação do ministro Antonio Palocci e dos economistas Bernard Appy e Marcos Lisboa. Várias das conclusões deste documento pioneiro, escrito em abril de 2003, ecoam nos estudos que vieram depois, o que mostra sua atualidade.
Os textos – todos anexados à versão digital da coluna – mostram uma convergência impressionante, embora nada surpreendente. Como todos que vivemos neste país sabemos, o Brasil tem um problema central que se sobrepõe a todos os outros, e que ficou ainda mais evidente com a pandemia: a imensa exclusão social. Ela é o tema central do estudo de Armínio e ocupa posição de destaque nos textos do Insper e do CLP. Há divergências sobre como atacar esse enorme desafio, mas pelo menos uma ideia parece consensual. Precisamos incluir sem prejuízo da responsabilidade fiscal, sob risco de penalizar ainda mais os brasileiros vulneráveis. Como sugere o título do documento do Banco Mundial, a reforma de nosso Estado tem de ser, antes de tudo, um “ajuste justo”.
A pandemia nos deixou sem rumo, e a tragédia do desmatamento na Amazônia vem comprometendo enormemente nossa imagem externa – o que traz a agenda do meio ambiente para o rol das urgências. Num momento assim, é fundamental usar as boas cartas de navegação que já temos. Dado que nossos problemas estão exaustivamente mapeados, seria vergonhoso bater no iceberg – ainda por cima, ao som de Celine Dion.
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