sábado, 1 de agosto de 2020

Luiz Otavio Cavalcanti - 100 anos de Celso Furtado. Ou a peregrinação do homem-nação –

- Revista Será? (PE)

O Brasil tem três intérpretes. Sérgio Buarque de Holanda, o homem cordial. Do latim cor, cordis, coração. Homem de paixão. Gilberto Freyre, a tri raça. Mescla de índios, brancos e negros. Portugal com açúcar. Homem misturado. Antônio Cândido, a língua. A pátria na sintaxe da palavra. Homem brasileiro.

Faltou alguém?

Sim. Celso Furtado. O quarto homem. O quarto intérprete. Talvez mais completo que os outros três. Não em tamanho contributivo. Ou latitude intelectual. Mas na escala do pensar e do fazer. Homem que sabia formular. E também agir. Como Malraux. Como Vargas Llosa. Estirpe de poucos. Que carregam a dor do conhecimento das coisas. E, ao mesmo tempo, a disposição para enfrentar a realidade nos seus limites.

A realidade e seus limites. Que impõe silêncios, subtrai recursos, desafia talentos. E, na arena do espaço público, semeia o discurso da construção. Permitindo que o intelectual, inconformado, se agigante. E tome, na palma da mão, a colher de Pedro Pedreiro. Para atuar na prática da gestão. No ofício da política. Assim foi Celso Furtado. Penso que esta será sido sua primeira característica.

A segunda de suas características foi o senso da reforma. Quando alguns imaginavam que revolução seria solução, ele pregava a sensatez: o caminho dos reformadores. O diálogo era sua instância preferencial. O convencimento era seu argumento final. A grande vantagem do reformador sobre o revolucionário é que este não deixa vítimas. O acordo vem sempre mais forte. Porque vestido em alianças. Duplicando energias.

Nesse ponto, sua experiência inicial no exterior, antes de ingressar no governo, em 1962, terá sido definitiva. Porque promoveu a troca fundamental: ele ensinou economia na Sorbonne e aprendeu arte política em Oxford. Exímio observador que sempre foi.

A terceira de suas características foi o olhar. A capacidade de olhar para a história. E para o futuro. Esta é uma sua outra singularidade. Ele olhava para trás e para frente. Via o passado e enxergava o futuro. Para avançar com menos erros, ele trazia o passado no bolso. Seus passos seguiam pegadas desenhadas pelo passado.

Por isso, ele era paciente. Era reformador. Era agente de transformação. E não se contentava com apenas ensinar e escrever. Precisava agir. Tinha ânsia de mudança. Percepção da obscenidade da miséria. E compreensão de que a saída do país passa pela remoção da desigualdade.

A lição mais bonita de Celso foi a lógica de sua concepção. Para além de economista. Na visão larga de humanista. Ele compreendeu que combater a desigualdade não era só uma questão ética. E era. Mas era igualmente parte da lógica capitalista. Sem vencer a pobreza extrema, o Brasil não tem como completar o mecanismo de oferta e demanda. A mecânica de funcionamento de mercado. Ou seja, o projeto capitalista é uma concepção econômica e social.

Cada vez mais social. Quando se agrega ao desenvolvimento o conceito de sustentabilidade. Quando se acata os valores de respeito à diversidade e aos direitos humanos. E quando se acolhe a amenidade do verde, a sanidade do meio ambiente descarbonizado.

Celso apontou o nó. Mostrou onde estaciona a viabilidade do desenvolvimento de países desiguais, como o Brasil. Estaciona na concentração de poder. Concentração de poder em estruturas burocráticas, politizadas. Que gera concentração de renda e riqueza.

Certa vez, Clovis Cavalcanti me disse que assistiu conversa entre Celso Furtado e Gilberto Freyre. No apartamento de Dirceu Pessoa. Fiquei pensando. Quando as pessoas são realmente grandes, elas se oferecem ao outro. Nas ideias, no afeto, na amizade, na admiração. E desse modo constroem um mundo mais fraterno.

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