O
caso dos 21 mil candidatos que mudaram de cor em relação à eleição anterior é
um forte indício de um país cuja população está passando por uma crise de
identidade
Dos
quase 550 mil candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador na totalidade dos
municípios brasileiros em 2020, 21 mil mudaram a definição da cor de sua pele
em relação à que haviam declarado na eleição de 2016. A cor da pele é
subjetiva, culturalmente determinada. O critério é peculiar de cada sociedade.
Kamala Harris, candidata democrata a vice-presidente nos EUA, é negra; aqui
seria branca.
Com
a política por trás dessas alterações na cor da pele dos candidatos, pode-se
supor que há aí oportunismo eleitoral e falta de autenticidade. A “Folha de S.
Paulo”, em matéria a respeito, selecionou oito fotografias de políticos que
mudaram de cor. Deles, apenas dois são de fato pretos. Um, de Salvador, que era
pardo em 2016, é agora preto. Outra, de São João do Meriti (RJ), que era preta
em 2016, ficou parda em 2020. Os outros seis são branquíssimos. Dois desses
brancos ficaram pardos. Dois eram pardos e ficaram brancos. Um era mais que
branco e ficou preto. E uma parda ficou preta, embora continue branca.
Dos
que se achavam brancos na eleição anterior, 38% se tornaram pretos ou pardos e
dos que se declararam pretos ou pardos, 31% agora são brancos. Desagregando as
categorias, dos brancos, 36% tornaram-se pardos. Dos pardos, 30% tornaram-se
brancos, 12% se tornaram pretos. E dos pretos 10% se tornaram pardos.
Pardo
não é o mulato. Em abril de 1500, Pero Vaz de Caminha comunicou ao rei de
Portugal que era parda a gente da terra descoberta. Assim, na nova nomenclatura
da cor dos políticos brasileiros, africanos se tornaram indígenas e indígenas
se tornaram africanos, o que é completamente falso porque impossível.
Do
total, 40% quiseram branquear-se, tornar-se mais claros. E 48% quiseram ficar
mais escuros. O que já foi a ideologia do branqueamento como objetivo político
nacional, defronta-se agora com a contraideologia da pretificação dos não
pretos. Um fenômeno sociológico do maior interesse. Tudo indica que, aqui,
copiar dos americanos sua concepção de raça falsifica nossas identidades
“raciais” e entra em conflito com nossa concepção das diferenças que não é de
origem, é de cor.
O
sociólogo Oracy Nogueira (1917-1996), da Escola de Sociologia e Política e da
USP, fez um estudo que se tornou clássico sobre a diferença das concepções
raciais lá e cá. Lá, se houver um ancestral negro na ascendência de alguém, por
mais branco que seja esse alguém, será sempre negro, a cor é de origem. Aqui, a
cor é de marca, é apenas a que está à flor da pele, a que pode ser vista e
reconhecida. Entre nós, a origem negra tende a se apagar com o branqueamento
resultante da mestiçagem.
Eu
não descartaria a possibilidade, no entanto, de que a questão racial está se
revigorando entre nós e se expressando em novas fontes e em nova ideologia de
preconceito.
Aqui,
a imensa maioria dos negros não é, provavelmente, negra de origem, como
tampouco é branca de origem a maioria que se autodefine como branca ou tem sido
assim definida pelo preconceito de resistência da atual onda de racialização da
sociedade brasileira. Somos um povo de mestiços. E nem assim majoritariamente
mestiços de pretos.
Os
negros têm uma situação mais complicada quanto a isso. Até a época da abolição
da escravatura, negro era uma classificação que os senhores de escravos davam
ao cativo. Negro era sinônimo de escravo. No início, até os índios foram
chamados de negros da terra. Os próprios negros não se reconheciam como tais.
Antes, definiam-se pela etnia de origem.
O
caso dos 21 mil candidatos que mudaram de cor em relação à eleição anterior é
um forte indício de um país cuja população está passando por uma crise de
identidade de origem porque está infeliz com sua identidade atual. Não se vê
nem se reconhece nela. Especialmente os jovens.
Mas
a autodeclaração, em vez de dar uma identidade por meio do reconhecimento
subjetivo da cor, desidentifica. Uma boa indicação, nesse sentido, é a
usurpação da cor parda, original e até hoje a dos índios, pelos negros, que os
consideram mulatos, que não são. Um recurso que favorece o negro e prejudica o
pardo.
Dos
candidatos atuais, 47,8% são brancos; 39,5% são pardos e 10,5% são pretos. No
critério do censo de 2010, no total da população, os pretos podem ser 6%, O que
indica o engano de que nestas eleições os pretos têm proporcionalmente mais
candidatos do que as outras categorias de cor.
É
pouco provável que, ao contrário do que se propala, os negros sejam a maioria
da população brasileira. Independentemente, porém, da autodefinição de cor,
certamente são mais do que dizem os números. A única certeza que resta é a de
que tudo depende do jogo de aparências e da manipulação de impressões que ele
possibilita.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).
Nenhum comentário:
Postar um comentário