sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Merval Pereira - O fantasma de Bolsonaro

- O Globo

Não vale a pena ficar revoltado com o cinismo do presidente Bolsonaro quando diz que acabou com a corrupção no Brasil. Quando todo poderoso ministro-chefe do Gabinete Civil, José Dirceu tinha um mantra. Repetia, para convencer os incautos: “Este é um governo que não rouba nem deixa roubar”.   

Por baixo do pano, corria solto o mensalão, com os mesmos partidos que hoje formam a base parlamentar do governo Bolsonaro. Imaginar que esses mesmos políticos possam hoje estar imunes às práticas nada republicanas que levaram muitos deles a serem investigados, denunciados ou condenados na Operação Lava-Jato, é ser ingênuo, o que Bolsonaro e os seus não são.  

Como sempre, o que Bolsonaro mira é sua reeleição, e acabar com a Operação Lava-Jato significa para ele um trunfo eleitoral, pois teoricamente apagaria a memória do ex-juiz Sérgio Moro, que Bolsonaro considera um concorrente perigoso em 2022.  

Por isso também o presidente está interessado em desmoralizá-lo através da sua condenação na Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) como juiz parcial no julgamento do ex-presidente Lula no caso do triplex. Pode, no entanto, estar dando um tiro no pé ao empenhar seu escolhido para a vaga no Supremo em uma ação pessoal contra Moro.  

A fixação de Bolsonaro em seu antigo auxiliar é tamanha que, ao ser questionado sobre a escolha do desembargador Kassio Marques para o STF, respondeu irritado: “Você queria que colocasse lá o Moro?”. Acabar com a Lava-Jato seria acabar com as investigações sobre corrupção, uma maneira simples de acabar com a corrupção, que continuaria escondida como sempre aconteceu no Brasil antes do mensalão e, sobretudo, do petrolão levantado pela Operação Lava-Jato.   
Une Bolsonaro e alguns ministros do Supremo a idéia de que aniquilar a imagem de Moro como justiceiro fará com que a Justiça brasileira volte a seu curso normal, com o Supremo sendo o último bastião de defesa do devido processo legal. Boa parte do Supremo, porém, considera que o “garantismo” que critica a Lava-Jato quer, na verdade, ter o controle dos processos de políticos, blindando-os da Justiça de Curitiba.  

Esses juízes chamados “consequencialistas”, ou “punitivistas” consideram, como o ministro Luis Roberto Barroso já disse, que o sistema de Justiça criminal no Brasil foi feito para não funcionar, protegendo os privilegiados. O que os ministros “garantistas” consideram excessos da Lava-Jato, os que a defendem acham que são medidas necessárias para evitar que fiquem impunes os privilegiados.  

A partir do mensalão, em 2005, até recentemente, a punição aos culpados por crimes do colarinho branco tem sido uma constante no Supremo Tribunal Federal (STF), e Bolsonaro chamou para seu governo o então juiz Sérgio Moro para aparentar que o combate à corrupção seria sua prioridade.  

Questões pessoais, envolvendo seus filhos, e ele próprio sendo investigado por ações na Presidência da República para controlar a Polícia Federal e outros órgãos de investigação como o Coaf, fizeram com que caísse a máscara de Bolsonaro.  

A união ao Centrão, grupo de partidos ligados ao fisiologismo, com diversos integrantes investigados pela Lava-Jato, marcou de vez a mutação, de combatente da corrupção a conivente com “criaturas do pântano”, no dizer de Sérgio Moro. Fazer graça com a idéia de “acabar com a Lava-Jato” é um ato falho de quem disputa com o fantasma de Moro, que o persegue nas redes sociais que um dia foram suas.  

A reação à fala de Bolsonaro mostrou que não será fácil acabar com a Lava-Jato, que se incorporou ao imaginário popular como um avanço civilizatório.      

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