Parafraseando
o “50 anos em 5” de JK, o que guia Bolsonaro é um projeto de “40 anos em 4”,
mas para trás, de volta ao mundo da ditadura e da Guerra Fria
Mal
começaram as campanhas municipais de 2020 e os atores políticos já falam em
2022. Especialmente o bolsonarismo e seus aliados estão concentrados na
aprovação de seu elixir político, que no momento tem o nome de Renda Cidadã,
continuação do auxílio emergencial que catapultou a popularidade presidencial.
Obviamente que há outros projetos no Congresso, mas seu sentido mais amplo está
deslocado da estratégia política de curto prazo, que é reeleger Bolsonaro e
salvar sua família das querelas judiciais. E qual é o projeto dos opositores do
presidente? Novamente, há uma miríade de temas, muitos louváveis, mas não uma
visão clara e articulada de como o Brasil deve lidar com os desafios do século
XXI.
A
ideia de projeto para o país, com metas claras, meios definidos e articulando
as questões numa visão ampla, está em falta no momento. Geralmente, o
comandante do Executivo federal tem a primazia na definição dos rumos
nacionais, pois foi votado pela maioria dos brasileiros, além de ter um enorme
poder político e administrativo. Mas o governo atual padece de cinco problemas
que dificultam liderar um processo mais amplo de mudanças.
O
primeiro é a falta de um diagnóstico para as grandes questões do século XXI.
Parafraseando o “50 anos em 5” de JK, o que guia Bolsonaro é um projeto de “40
anos em 4”, mas para trás, voltando ao mundo do final do regime militar e da
Guerra Fria. O passadismo domina o presidente, que se concentra em temas morais
que lutam contra mudanças contemporâneas de valores e é saudosista da época da
ditadura. É verdade que ele enviou várias propostas administrativas e
econômicas ao Congresso Nacional, que poderiam ser colocadas dentro de um
“pacote modernizador”. Porém, a soma dessas medidas geraria qual tipo de
Estado? Quais devem ser as principais funções governamentais dentro da ótica
bolsonarista? Como deveria ser a articulação do setor público com a sociedade?
Qual é o modelo de gestão pública do bolsonarismo?
Em
outras palavras, o governo Bolsonaro não apresentou até agora, com clareza, um
diagnóstico de quais são os principais obstáculos para o desenvolvimento
brasileiro do século XXI. Na verdade, o bolsonarismo é muito frágil no
diagnóstico e no prognóstico na grande maioria das políticas públicas. Está
aqui o segundo obstáculo para se construir um projeto mais amplo para o Brasil.
Quem são os principais formuladores do governo? Quais países inspiram as
políticas públicas ou, então, quais são as evidências que alimentam as decisões
do primeiro escalão da área social?
Haveria
vários exemplos dessa falta de perspectiva das políticas públicas. Para citar
um deles: todos os economistas apontam o grande problema da produtividade da
economia brasileira e como a questão educacional tem um peso decisivo neste
tema. Pois bem, o que o MEC está fazendo ou pretende para melhorar efetivamente
a Educação do país? Ninguém sabe. Falar contra Paulo Freire é lutar contra o
passado - e uma luta equivocada - e não aponta um rumo para o futuro. Quais são
as medidas inovadoras que estão pensadas para que o país melhore sua posição no
PISA nos próximos dez anos? O que está sendo pensado para reduzir as
desigualdades educacionais do país? As perguntas são muitas, e o silêncio das
respostas é ensurdecedor.
Outro
exemplo: é impossível imaginar o futuro do Brasil sem propor políticas
consistentes sobre a questão ambiental. Aparentemente, o que governo tem
conseguido é apenas piorar neste setor, com o esvaziamento dos órgãos públicos,
a desregulação selvagem da legislação e, para coroar o retrocesso, os
resultados têm sido apenas mais desmatamento, queimadas e desprestigio
internacional. Aquilo que deveria ser um ativo para o desenvolvimento do país
tornou-se um empecilho. O problema é que, em vez de apontar mudanças na postura
atual, adota-se um comportamento meramente defensivo ou então se aposta na
radicalização da destruição de tudo que foi feito ao longo da redemocratização.
Alguém imagina que o Brasil melhorará no século XXI com o modelo bolsonarista
de política ambiental?
Claro
que podem ser citadas, aqui e acolá, medidas modernizadoras vindas do Executivo
federal, como as ações do Banco Central para modernização do sistema de
pagamentos do país. E aqui entra o terceiro obstáculo presente no governo
Bolsonaro: há muitas forças políticas, muitos desiguais entre si e
descoordenadas, convivendo no mesmo espaço, sem que uma liderança clara dê um
sentido sistêmico às propostas.
O
maior exemplo disso é a inflação de propostas que o Executivo federal mandou ao
Congresso Nacional sem que haja prioridades entre elas. Cada mês uma delas é
alçada ao topo das preocupações. O pior de tudo é que não há comprometimento
presidencial nem com todos os pontos presentes nestes projetos. É muito
estranho um presidente que manda algumas propostas de emenda constitucional
bastante complexas, que mudam aspectos profundos do Estado, ter como principal
preocupação a aprovação do novo Código de Trânsito Brasileiro! Que pontos
estratégicos dessa legislação vão melhorar o futuro dos nossos filhos e netos?
No
fundo, Bolsonaro se importa mais com aquilo que não tem evidências sobre seu impacto
positivo de longo prazo, como a legislação das armas, do que com as grandes
questões estruturais brasileiras, num caminho inverso aos dos países que estão
efetivamente se preparando para o século XXI. Se voltarmos ao seu programa de
governo apresentado na eleição, na maioria das vezes eram temas menos
relevantes que ganharam destaque - e nos pontos efetivamente importantes,
geralmente Bolsonaro apresentou propostas populistas ou que ele abandonou no
meio do caminho, como o seu lavajatismo.
A
falta de uma coalizão bem organizada no Legislativo, em termos de apoio e
ideias, tem sido um quarto empecilho para a construção de uma visão clara de
futuro. Isso gerou uma postura de desresponsabilização do Executivo, que muitas
vezes torce para que os parlamentares resolvam sozinhos os problemas da agenda
pública do país. Assim foi na reforma da Previdência, e alguns apostam que esse
processo poderá ser repetido nas reformas administrativa e tributária. O
problema é que quando o Executivo se ausenta, também podem ser aprovadas coisas
que atrapalham o funcionamento governamental, seja em termos fiscais, seja na
capacidade de execução.
Desde
a prisão de Queiroz, no dia 18 de junho, Bolsonaro mudou de posição e começou a
construir uma base parlamentar. Essa decisão, em boa medida, serve a ambos os
lados como um mecanismo de autoproteção e sobrevivência de deputados e do
próprio presidente. No entanto, vislumbra-se agora que se pode e se deve buscar
algo mais dessa aliança, como revela a discussão sobre o Renda Cidadã. Só que
exatamente quando essa parceria aponta para uma mudança legislativa importante,
descobre-se o quinto e último aspecto que limita o reformismo bolsonarista: a
dificuldade de pensar além das eleições de 2022.
É
inegável que programas de transferência de renda constituem uma condição
necessária para se combater a desigualdade brasileira. Mas é preciso juntá-las
como outras políticas sociais. A desigualdade é múltipla e exige remédios
vindos de vários setores. Qual é a política bolsonarista, por exemplo, para se
reduzir a desigualdade racial? Afinal, são os negros que mais morrem com a
violência na periferia, inclusive da vinda da polícia, bem como há um grande
abismo educacional entre as crianças brancas e as negras. Obviamente que a
renda é um ponto de partida desse processo, mas sozinha não muda este triste
quadro, que já nem deveria existir em pleno século XXI.
Até
agora os governistas só pensam em distribuir dinheiro para receber fidelidade
na hora do voto. É esse mesmo sentido pragmático que move hoje o presidente,
que no passado fora contra o Bolsa Família e todas as ações de redistribuição
mais direta de renda aos pobres brasileiros. Todos podem mudar e fazer
autocrítica, mas o que deve ser exigido de Bolsonaro envolve uma pergunta
maior: qual será o desenho dessa política de transferência de renda para os
próximos dez anos?
Do
lado da oposição ao governo Bolsonaro, no seu sentido mais amplo, muitas
propostas e temáticas relevantes têm sido levantadas nos últimos meses. Elas
vêm de partidos ou de grupos da sociedade civil que têm apresentado bons
debates e ideias sobre meio ambiente, educação, questão racial, saúde e outras
questões verdadeiramente estruturais para o país. Não obstante, a fragmentação
dessas visões de mundo e a falta de um modelo mais sistêmico que aponte
soluções para frente, em vez de se concentrar nos sucessos e erros do passado,
constituem uma fragilidade daqueles que querem se opor ao atual governo.
Muito
se fala da necessidade de construir uma frente ampla, da centro-direita à esquerda,
contra o bolsonarismo. Pode ser que isso seja necessário para a eleição de 2022
- e esse é um tema para um outro artigo -, mas é preciso dizer qual será o
projeto mais amplo que vai orientar essa aliança, de modo que ela não seja
apenas defensiva.
O
país está num momento de ausência de uma proposta consistente de futuro. Para
superar essa fase, além dos votos, será necessário propor ideias e soluções que
vislumbrem algo além do curto prazo e do personalismo presidencial.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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