Civilidade
não pode significar promiscuidade entre poderes
Harmonia,
civilidade e cortesia são atributos imprescindíveis às boas relações entre os
humanos, sobretudo quando nas mãos deles está o destino da nação e na figura de
cada um a representação dos poderes da República. Portanto, há de ser bem
recebida a decisão do presidente Jair Bolsonaro de arquivar (ou abandonar, numa
perspectiva otimista) a hostilidade que vinha exibindo em relação ao Supremo
Tribunal Federal.
Há
de se ressalvar, porém, que do “oito” da agressividade não é aceitável uma
transição para o “oitenta” do excesso de informalidade, terreno pantanoso em
que se corre o risco de resvalar para a promiscuidade. Esse é um cuidado a ser
observado e preservado na fase inaugurada pelo presidente da República no
âmbito da indicação do novo ministro do Supremo. Vale para o chefe do Executivo
e vale também para integrantes do Legislativo e do Judiciário.
Não
soa adequado um senador usar o pronome “nosso” para se referir ao desembargador
Kassio Nunes Marques, ainda mais quando o referido congressista (Ciro Nogueira)
é alvo de processo no STF. Assim como não parece apropriado o presidente
ressaltar entre as qualidades de seu escolhido para compor a Corte Suprema o
fato de ser seu parceiro no consumo de “tubaína”.
“Na
República há que preservar a impessoalidade sem prejuízo da cortesia na relação
entre autoridades”
Sem
dúvida alguma é muito melhor ver o presidente levar seu indicado ao encontro de
dois ministros do STF em sinal de amabilidade do que vê-lo e ouvi-lo incentivar
manifestações em prol do fechamento do tribunal guardião da Carta Maior. A
despeito da intenção contida no gesto, talvez tivesse sido mais apropriado
fazer a cortesia em ambiente profissional e não em jantar amigo na casa de
Gilmar Mendes ou em tarde de pizza e futebol na residência de Dias Toffoli.
A
ideia era transmitir ao país uma mensagem de harmonia entre os poderes, mas,
para espíritos menos tolerantes ao hábito corrente em Brasília de confundir
convivência civilizada com relações perigosamente inadequadas, pode parecer uma
ultrapassagem dos limites da necessária harmonia e uma agressão ao indispensável
preceito constitucional da impessoalidade.
A
observância de rituais de formalidade não significa dizer que as relações entre
altas autoridades da República devam se dar em ambientes hostis, muito menos
sob a égide da descortesia. Tomemos os exemplos do presidente do Supremo, Luiz
Fux, e outros colegas de tribunal que não têm como prática frequentar
confraternizações onde juízes se misturam a advogados, investigadores a
investigados, lobistas a congressistas. Nem por isso podem ser vistos como
republicanamente desrespeitosos. Ao contrário.
Com
toda a boa vontade com que se possa receber a adesão do presidente Bolsonaro
aos bons modos no convívio com os outros poderes, convém não perder de vista
determinadas fronteiras, a fim de não se transmitir aos brasileiros uma
sinalização errônea a respeito do funcionamento das instituições, necessitadas
que estão do galho forte do acolhimento, da admiração e da proteção social.
*Publicado em VEJA de 14 de outubro de 2020, edição nº 2708
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