O
assustador número de mortos na pandemia não parece comover Trump nem Bolsonaro.
Com
sua torrente incomum de surpresas e sobressaltos, os dias em curso parecem
confirmar que estamos em meio aos fenômenos mórbidos que, segundo a frase
famosa, se colocam entre o velho que morre e o novo que não consegue nascer.
Longe de virar jargão, a frase descreve situações por certo inéditas e
espantosas. Comecemos pelo fato de que um dos dois grandes partidos que
vertebram a democracia norte-americana acaba de ser definitivamente tomado de
assalto por uma extrema direita subversiva, “leninista”, a qual,
impossibilitada eleitoralmente de levar a cabo a fatídica obra de esvaziamento
das instituições, ameaça uma das regras mínimas da democracia, a saber, o
exercício da regular alternância no poder.
Não
é nada fácil para esse tipo de extremismo ter êxito na empreitada, mas o
simples fato de tentá-la já é um mau presságio. Indica, antes de mais nada,
alto grau de confiança na novíssima estratégia de erguer despudoradamente uma
realidade paralela a partir de “fatos alternativos”. Para tanto se deve
metodicamente corroer o bom senso e degradar o senso comum, implodindo a
realidade objetiva e os modos compartilhados de vivenciá-la. Tudo o que é
sólido se desmancha numa sequência estonteante de conspirações, irrealidades,
fantasmagorias. A Terra não é redonda, ninguém jamais pisou na Lua e Trump não
perdeu as eleições, pelo menos se forem contados os votos da sua preferência. E
com a certeza dos simples muitos se associarão a essas sandices.
Muitos,
mas não todos e menos ainda a maioria. Por isso, neste tempo de situações
patológicas, a estratégia da direita “revolucionária” – não confundir com a
direita constitucional, que participa normal e legitimamente do jogo
democrático – renuncia previamente ao argumento racional, só ele capaz de
agregar consensos e sustentar as boas sociedades, mesmo quando se transformam.
Não diria que, para os “leninistas” de direita, tudo seja política, mas
certamente tudo é ideologia: o mundo, assim, sem maiores escândalos, pode ser
impunemente virado do avesso ou percebido de ponta-cabeça. E para que esse
objetivo insano seja atingido se requer uma alucinada obra de regressão
cultural que, ao fim e ao cabo, afaste as pessoas das modernas promessas de
autonomia e as torne prisioneiras de um passado de fábula.
Veja-se,
para dar um só exemplo, a realidade dos dois maiores países ocidentais –
Estados Unidos e Brasil –, que desgraçadamente experimentam a associação entre
governos extremistas e pandemia do novo coronavírus. O assustador número de
mortos em nenhum momento parece comover Donald Trump, Jair Bolsonaro e as
respectivas equipes dirigentes. Falece a esse tipo de governante, por
princípio, a capacidade de “sentir com”, a inspiração de falar a verdade à
população, de mobilizá-la para usar os recursos disponíveis, seja o
distanciamento social, seja uma simples máscara. Estão alheios até mesmo ao
“conservadorismo com compaixão” de épocas mais previsíveis; o que lhes importa
é que a máquina econômica continue a girar, como se, bem ali ao lado, a pilha
de mortos não importasse ou só merecesse um “lamento” vazio e falso.
Pior:
dirigentes desse tipo agem conscientemente para promover a involução cultural
de que se nutrem e com que se afirmam. Ao longo dos meses ambos apregoaram
curas falaciosas e medicamentos nocivos, como no caso da cloroquina (antes, o
curandeirismo do presidente Bolsonaro já se manifestara com uma certa pílula do
câncer, o que o singulariza como um reincidente problemático). As vacinas em
desenvolvimento são tratadas como matéria de política rasa – de ideologia –, de
sorte que, como subproduto indesejado, se dissemina entre muitos uma atitude
contrária à vacinação e à própria ciência. Arenga-se inutilmente,
irracionalmente, sobre a “nacionalidade” do vírus, como se a irrupção deste e
de outros vírus não fosse catástrofe prevista e até potencializada por um
conjunto de práticas deletérias, entre as quais o desmatamento, em que nosso
país tem tido um protagonismo acabrunhante.
Em
tempos mais convencionais, há um nexo entre democracia, conhecimento e elevação
intelectual generalizada, um dos poucos indicadores certos de que o gênero
humano progride e consegue disseminar, ainda que desigualmente, os frutos deste
seu progresso. Inversamente, em tempos atribulados, autocracia, obscurantismo e
rebaixamento intelectual andam de mãos dadas, golpeando a convivência civil e a
boa política, que assim perde a capacidade de estimular o confronto de paixões
e interesses, ao mesmo tempo que recompõe o terreno comum entre os que se
confrontam.
A
vitória de Joe Biden e os bons ventos que inspira, ao prenunciarem as
dificuldades da direita “revolucionária”, não constituem só um fato político,
mas têm alcance, por assim dizer, moral e cognitivo. Se tivermos sorte, marcam
o início do fim de um ciclo de pesadelos antimoderno ou típico de uma
modernidade reacionária. De algum modo nos permitem ver além dos fenômenos
patológicos do presente e devolvem a esperança em nossa comum humanidade.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
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