Irracionalidade
e incompetência surgem em tempo real, revelando inteligências e burrices
nacionais e internacionais
Morar
“lá fora” ainda é percebido como superior ao residir “aqui dentro”, pois
continuamos a nos pensar como uns vira-latas rodriguianos. Sobretudo quando o
foco é a “política”, cujo campo, por ser competitivo, é lido como um lugar de
malandragem, falsidade, oportunismo, roubalheira e, hoje, de extraordinário
irracionalismo. Daí nasceu — valha-nos, Deus! — o jubiloso “rouba, mas faz!”.
Quando
entubamos que um político tenha como mérito o “roubar, mas fazer”, admitimos
que é normal trair os hiperprivilégios dos cargos eletivos para nada fazer. Há,
porém, honrosas exceções: os que, além de atraiçoar os eleitores coçando o
saco, fazem alguma coisa roubando! Esse costumeiro “fazer” o mínimo (ou o
máximo) do mínimo confirma o imperativo de repensar todo o campo.
O “rouba, mas faz” é mais um paradoxo brasileiro. O “burro doutor” é um outro par igualmente ambíguo, tanto quanto supor que, depois de cinco séculos de abjeta escravidão africana sustentadora de traficantes e nobres, viramos, em 1889, uma república em que todos seriam iguais perante a lei!
A
transição de um sistema escravocrata para uma liberalidade republicana requer
permanentes ajustamentos. Todos destinados a evitar uma escandalosa igualdade.
Populismos autoritários, golpistas e irresponsáveis são “ajustamentos” dessa
formidável e esperançosa mudança. Ficou, porém, como uma incômoda delação do
nosso esplêndido berço aristocrático e escravocrata, um inabalável “você sabe
com quem está falando?”.
Esse
abusivo desmascaramento de um profundo senso hierarquizado, segundo o qual
todos deveriam saber pelo “jeito” ou aparência (o escravo era — ou deveria ser
— preto!) com quem se fala. Tal pressuposto está no centro dos nossos
preconceitos.
Quando
uma “pessoa de cor”, insegura ou malvestida tem um comportamento igualitário,
ela rompe com o código de humildade e submissão instruído a chibata, favor e
miséria. A igualdade nua e crua é, no Brasil, uma ousadia ou insulto.
Não
somos conscientemente contra a igualdade, mas a calibramos inconscientemente,
revelando como — apesar de todas as demagógicas afirmações igualitárias — há
superiores (ou donos) em toda parte.
A
democracia deixa de ser a bússola da vida pública para virar mais um populismo:
coisa fácil e boa de falar, mas difícil de viver. E, de quebra, legitimadora do
roubar. Ressurge o fundo hierarquizado e familístico do sistema, fraturando sua
superfície igualitária.
Globalização
com pandemia explodiu as perfeições do “lá fora”, porque o lá que era perfeito
e o cá, sempre atrasado, ficam parecidos. A globalização é antropológica: ela
obriga a comparar, e o estranhamento revela modos diversos de conceber estilos
sociais diante do inesperado, da doença, da morte e, agora, da cura! A
irracionalidade e a incompetência surgem em tempo real, revelando inteligências
e burrices nacionais e internacionais.
No
meio do caos, percebemos que, quanto mais temos Estado e burocracia
legistocrática, mais surgem familismo, compadrio e dinastia política. Se
fizermos uma genealogia do poder à brasileira, ficaríamos assombrados com a
magnitude dos elos de sangue que correm pelas veias das nossas elites. O
impessoal — como, outra vez, mostra esta eleição — não disciplina o pessoal.
Sugeri
que o personalismo de Donald Trump “brasilianizava”, canibalizando a América
das leis e instituições. Canibalismo rotineiro no Brasil, que muda a lei para
soltar o ladrão e, assim, destrói instituições.
Lá
— apesar de Trump —, o entendimento de que as leis são para todos; aqui, o
entendimento é que quem segue regras é inferior ou otário. Os superiores e os
malandros não as seguem justamente porque têm o poder de driblá-las,
inventá-las e modificá-las. Preciso lembrar o foro privilegiado e os recursos
infinitos que fazem as fortunas dos causídicos e levam a duvidar da existência
da democracia?
O
“sabe com quem está falando?” não é somente um brasileirismo, é a prova de um
duelo permanente entre interesses e éticas, sem as quais evapora-se a ordem
democrática. E o centro da desordem nacional é, exceto no futebol, a
sistemática mudança das regras em função de projetos populistas, vale dizer: pessoais.
Lá,
o “você sabe com quem está falando?” mostra que uma pessoa tipo Trump não tem
consciência do seu papel, pois não sabe quem é. Aqui, porém, saber com quem se
fala e conhecer o próprio lugar é uma obrigação. Debaixo de uma igualdade
popularesca, há sempre um superior (branco ou rico) e um inferior (preto e
pobre).
P.S.: O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional sofre com um oficializado “você sabe com quem está falando?”, agredido com uma ofensiva perda de autonomia. Patrimônio nacional (que tem a ver com a nossa identidade) não pode ser também polarizado pelo bolsonarismo. Se for, esvazia-se institucionalmente.
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