É
antiético alegar problema fiscal para suspender auxílio
Todos
os grupos de interesse específico tem representantes em Brasília, dentro e fora
do Congresso Nacional, alguns com mais e outros com menos força para fazer
valer sua participação no orçamento público. É disso que se trata a disputa
pelo poder na capital de qualquer República, sob a vigência do Estado
democrático de Direito.
O
que torna o Brasil um país particularmente injusto é que os pobres, a maioria
silenciosa deste imenso território, não têm representação no centro do poder
nem quem os defenda por dever de consciência. Isso pode parecer um exagero, mas
não o é, afinal, quando olhamos mais de perto iniciativas de políticos e
partidos que se jactam por defender os pobres em Brasília, contradições
pululam.
Um exemplo: sindicatos de trabalhadores da região do ABC, onde se concentra no Estado de São Paulo a maioria das empresas do setor automotivo, se unem para pressionar o governo, todo ano, a conceder incentivo fiscal às multinacionais. Não se passa um ano, na Ilha de Vera Cruz, desde a década de 1950 sem que essas companhias, originárias das nações mais ricas dom planeta, recebam dinheiro público subsidiado para... permanecerem aqui, onde está o sexto maior mercado (atrás apenas de China, Estados Unidos, Japão, Índia e Alemanha) de automóveis _ este país é também o oitavo maior fabricante.
O
último incentivo aprovado para as múltis de carros prevê a liberação de R$ 8
bilhões em dinheiro da Viúva em quatro anos. Provavelmente, esse montante é, em
termos relativos, muito menor em relação ao que se dava no passado e deve ser
uma mixaria face ao faturamento e ao lucro do setor no país, sejam quais forem
esses valores _ sim, leitores, mesmo beneficiário de dinheiro público, as
montadoras nunca divulgaram seus números ao povo que as subsidia.
É
curioso que ninguém, o parlamento ou mesmo as instituições
"democráticas" criadas pelo distinto público para representá-lo e
defendê-lo. O dinheiro que essas multinacionais embolsam a título de incentivo
não é nada para elas, mas é algo para Ilha de Vera Cruz, onde vivem 50 milhões
de miseráveis e, pelo menos, mais cem milhões de pobres.
Ora,
como alguém pode achar que a manutenção desse subsídio de alguma forma ajuda
pobres e miseráveis deste imenso país? Conceder incentivos ao setor automotivo,
a esta altura do jogo, apenas contribui para concentrar ainda mais a renda,
tirar de pobres para dar a ricos. Pense duas vezes antes de elogiar o político
que defende o "cluster" da indústria automotiva brasileira. Ademais, convenhamos,
por que dar incentivo a um setor protegido, contra concorrentes estrangeiros,
por barreiras tarifárias (impostos e outros tributos) e não tarifárias (por
exemplo, proibição de importação de carros usados)?
Outro
exemplo das contradições expostas por grupos políticos que dizem estar em
Brasília com a única "missão" de defender os desvalidos vem dos
partidos de esquerda, que, por definição, são os mais propensos à formular
políticas de combate à pobreza e emancipação das classes menos favorecidas em
regimes democráticos. Por aqui, partidos de esquerda estão sempre a postos para
proteger privilégios _ e não direitos _ adquiridos pelo funcionalismo público e
os servidores de estatais. Não adianta lutar por um salário mínimo mais digno,
por mais e melhores escolas, por um atendimento saúde público universal e digno
e, ao mesmo tempo, lutar pela manutenção de um Estado caro, ineficiente e
injusto, portanto, incompatível com implantação do projeto de nação previsto na
Carta Magna de 1988.
É
a falta de representação em Brasília que faz com que, nos momentos de
dificuldade fiscal, governantes, parlamentares e membros "ilustres"
do Poder Judiciário proponham "soluções" que, ao fim e ao cabo, tirem
dinheiro de quem já tem pouco (os pobres) e dos que não têm nada (os miseráveis).
Por isso, falar de problema fiscal "grave" no momento em que, todos
sabemos, milhões de brasileiros (estima-se como algo em torno de 23 milhões de
pessoas e suas famílias) ficarão sem renda em meio à maior crise sanitária da
história, é terrivelmente doloroso, inclusive, por sabermos que nenhum grupo de
interesse específico terá seus direitos suprimidos em nome da emergência que o
país e o mundo enfrentam.
Em
janeiro, não haverá mais auxílio emergencial. O economista Manuel Pires, do
Ibre-FGV, esmiuçou as possibilidades para que Brasília encontre uma solução em
relação ao auxílio que não jogue o país numa crise severa em poucas semanas. As
conclusões não são animadoras.
1.
A forma talvez mais direta seria passar uma PEC que determinasse que o novo programa,
temporário ou permanente, estaria fora do teto de gastos, assim como já ocorre
com itens como créditos extraordinários, Fundeb e a capitalização de estatais.
PECs
têm muitas etapas de tramitação nas duas Casas, mas suponhamos que, com um
hipotético consenso entre Executivo e Congresso, se tentasse fazer tudo em
tempo recorde a ponto de 2021 começar já com algum substituto do auxílio.
Há
obstáculos muito sérios nesse caminho. Já foram emitidos sinais do Tribunal de
Contas da União de contrariedade em relação a excluir novas despesas do teto de
gastos, por causa dos riscos fiscais. Adicionalmente, uma forma tão acintosa de
driblar o teto de gastos, mesmo que bem recebida inicialmente pelo Congresso,
provavelmente causaria grande estrago nos mercados, com possibilidade de
disparada do dólar e queda acentuada das bolsas - o que costuma soar o alarme
dos políticos e levar ao recuo.
2.
Uma segunda via para excluir um novo programa do teto seria prorrogar o estado
de emergência e recriar o orçamento de guerra. Isso exigiria a tramitação de
PEC, o que esbarra, como já notado, no pouco tempo de funcionamento do
Congresso até o recesso.
Com
a recriação do orçamento de guerra, seria possível não só criar um Renda
Cidadã, mas também incorrer em qualquer despesa acima do teto, sem nenhuma
amarra. Certamente seria medida também de grande impacto negativo nos mercados,
a menos que uma segunda onda de Covid-19 muito forte a justificasse.
3. Finalmente, existe a possibilidade de fazer um programa temporário ou estender o auxílio emergencial - possivelmente com redução de valores e público-alvo - por meio de crédito extraordinário, que não está submetido ao teto. das de lockdown etc. - pode ser caracterizada como algo impossível de prever.
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