O
trágico enredo da pandemia parece ter chegado ao limite com a indefinição sobre
a vacina
Começando
pelo fim: os prazos costumam definir a tolerância que a sociedade concede aos
governos e líderes. Ao se esgotarem, alteram o humor das mais passivas e
indiferentes criaturas. Então, o desespero, que parecia contido, transborda,
como um aviso aos governantes. Sinalizou-se, no caso da negligência homicida
com a imunização contra o coronavírus, que algo precisa ser feito. É imperativa
uma intervenção no ritmo da insensatez do presidente Jair Bolsonaro.
Não
se propõe impeachment, esclareça-se. Até os eleitores frustrados o desprezam.
Mas os poderes Legislativo e Judiciário, os Estados e municípios, as
instituições de Estado, os movimentos sociais, dispõem de meios e métodos menos
agudos e mais eficientes.
Ontem, em Brasília, empreendeu-se uma dessas batalhas. Em reunião com o ministro da Saúde, os governadores pretenderam mover o governo Bolsonaro em alguma direção. Apesar do mundo civilizado estar celebrando o início da imunização no Reino Unido, pediam o básico do óbvio. O tenso encontro produziu as promessas de sempre, mas apressou o anúncio de intenções negociadas de véspera.
No primeiro encontro, há um mês, Eduardo Pazuello anunciou que iria adquirir a vacina do Instituto Butantã, desenvolvida com o laboratório chinês Sinovac. No dia seguinte recuou, sob vara, com advertência pública do presidente. Ontem, fez nova promessa, de compra da vacina da Pfizer, que o sistema não tem nem condições de armazenar a 70 graus negativos. Mas desta não deve recuar. A vacina é americana e o protocolo de intenções para adquiri-la foi assinado ontem mesmo.
Já
esperado, a reunião produziu mais um lance na disputa política de Bolsonaro com
João Doria. Ao condenar planos estaduais de vacinação, como o de São Paulo, que
contrapôs ao plano nacional, inexistente, o ministro não deu transparência ao
que fará com a vacina do Butantã.
A
série histórica de afirmações e recuos de Pazuello e Bolsonaro não animam
expectativas positivas.
No
caos que se delineia, os governadores devem esperar um desfecho carregando
pedras, pois têm novo obstáculo imediato, o descaso culposo da Anvisa. O órgão
regulador assumiu o critério político para a questão sanitária. E produziu uma
pérola de bula administrativa: “Para a solicitação do uso emergencial é
esperado que sejam apresentados minimamente os dados descritos do guia sobre os
requisitos mínimos para submissão de solicitação de autorização temporária...”
Ainda tirou da sacola um prazo novo: depois de receber a papelada final, vai
precisar de 60 dias para ruminá-la.
A
loucura federal deixou sem sentido a escalada de fortes adjetivos com que
cidadãos e críticos se referem ao governo Bolsonaro. Demência. Fascismo.
Obscurantismo. Ignorância. Ao se completarem, amanhã, nove meses de devastação
e isolamento social, o trágico enredo da pandemia parece ter chegado ao limite.
O
governo, com seus tanques movidos a ódio, insulta a população, acuada, tentando
exercer discretamente seu direito à sobrevivência. E a ataca, de um lado, com a
bandeira do Ministério da Saúde, o campeão da morte. De outro, com a bandeira
do Ministério da Educação, o vice-campeão. Repartição que se atribui a tarefa
de manter sob tensão e risco 53 milhões de estudantes, 2,6 milhões de
professores e outros tantos milhões de servidores das escolas. E suas famílias.
Em nove meses de pandemia, o terceiro ministro da Saúde do governo Bolsonaro foi incapaz de negociar para o País uma única dose de vacina. O quarto ministro da Educação foi incapaz de organizar a reabertura de uma única escola. Bolsonaro segue na sua fixação: a campanha eleitoral de 2022. É de reeleição que trata ao se empenhar no domínio do Poder Legislativo. É de reeleição que se ocupa ao providenciar reforma ministerial para ampliar o cofre do Centrão. Sem ilusões: não estaria a vacina sendo usada também na barganha dos interesses eleitorais?
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