No
Brasil, há crença de que o ano começa depois do carnaval. O calendário da festa
que não houve chegou ao fim, e o país conseguiu a proeza de reiniciar o ano
velho. Em março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde declarou que a
Covid-19 era uma pandemia, o novo coronavírus já estava em transmissão
comunitária no país, e a primeira morte se avizinhava. Adentramos a crise
sanitária com estrutura de atendimento insuficiente, economia patinando, rede
de proteção social desmontada, ambiente político instável. Quase 12 meses e
mais de 242 mil mortes depois, assistimos à suspensão da vacinação por falta de
imunizante, ao Produto Interno Bruto desacelerando, à inflação em alta, ao
auxílio emergencial interrompido — e por ser relançado. Nada aprendemos.
Um ano atrás, evoquei o tetraedro como figura geométrica apropriada a representar o ambiente que se avizinhava. O Brasil enfrentava uma crise com quatro faces: sanitária, econômica, social, política. Sob pressão da sociedade civil e de membros do Parlamento, o governo produziu respostas importantes, mas não suficientes. Mal planejadas, elaboradas sem cuidado, tiveram impacto localizado, muito em razão da sabotagem contínua do presidente da República às recomendações de distanciamento social e isolamento. Foi possível preservar empregos formais com os acordos de redução de jornada e salário, aplacar o aumento da pobreza com parcelas do auxílio emergencial, ampliar a oferta de leitos de enfermaria e UTI. Tudo por algum tempo.
A
incompetência ativa do governo federal na crise sanitária alcançou a atividade
econômica. A recuperação do PIB no terceiro trimestre perdeu força nos últimos
meses de 2020. O país terminou o ano com saldo positivo de 142 mil vagas com
carteira assinada, num sinal de que a tempestade que dizimara quase 1,5 milhão
de postos formais nos três primeiros meses da pandemia fora superada. Se revela
uma foto, a informação esconde o filme. Houve resultado positivo na construção
(112.174), na indústria (95.588), na agropecuária (61.637), no comércio
(8.130). Nos serviços, maior empregador e alavanca do PIB, responsável por três
quartos da atividade, o saldo de contratações e demissões ficou negativo em
132.584 empregos.
Não
é difícil de entender. O setor depende fortemente da circulação de pessoas —
vide turismo, cultura e entretenimento, transportes. Conecta-se, portanto, às
condições sanitárias. Não foi à toa que o presidente do Banco Central, Roberto
Campos Neto, relacionou a vacinação em massa à retomada da economia.
Negligenciada a saúde da população, a atividade definhou. Os indicadores
antecedentes do início do ano mostram arrefecimento; já são duas semanas
seguidas de revisão (para baixo) na projeção de crescimento em 2021 no boletim
Focus. De quebra, a redução à metade, em setembro, e o fim do auxílio
emergencial, em dezembro, segundo a FGV Social, elevou em 16,9 milhões o número
de brasileiros que vivem com menos de R$ 246 per capita por mês.
Uma
tempestade perfeita engolfou o Brasil neste primeiro bimestre. No eixo
socioeconômico, a vulnerabilidade social aumentou, o desemprego segue no maior
nível desde 2012, o custo de vida sobe com reajustes dos combustíveis, da
energia e dos alimentos. A pandemia recrudesceu na forma de uma segunda onda,
que se espalha com cepas mais transmissíveis do coronavírus; governadores se
queixam de cortes de verbas que ameaçam a oferta de leitos de internação nos
hospitais. A vacinação em massa, necessária para frear o avanço da doença,
esbarra na falta de imunizantes. Até aqui, o Brasil recebeu 12,1 milhões de
doses (dez milhões ofertadas pelo Instituto Butantan, de São Paulo),
suficientes para imunizar fração modesta de uma população superior a 210
milhões de habitantes.
O
governo federal gastou recursos produzindo e saliva recomendando medicamentos
que a ciência não reconhece como eficazes no combate à Covid-19, ao mesmo tempo
que negligenciou o investimento num leque de vacinas. Desmoralizou o Programa
Nacional de Imunização, um dos orgulhos do arcabouço de políticas públicas do
país. Com campanhas maciças de vacinação, o Brasil erradicou a poliomielite e,
até três anos atrás, o sarampo. Houvesse doses, conseguiria vacinar até dois
milhões de pessoas por dia. Vacinou pouco mais de cinco milhões em um mês,
porque escolheu um governante insensível e inepto, Jair Bolsonaro. Os EUA, no
mesmo período, defenestraram Donald Trump, outro negacionista globalmente
conhecido. O agora presidente Joe Biden anunciou plano para vacinar cem milhões
de americanos em cem dias de governo, marca facilmente alcançável por um Brasil
que deixou de existir.
O país é hoje refém de um interminável Dia da Marmota, referência ao filme “Feitiço do tempo” (1993), em que o protagonista Bill Murray dorme e acorda na mesma data. Só se liberta quando aprende a lição. Os brasileiros adentramos o segundo ano de um ciclo nefasto que ceifou vidas, empobreceu nossas casas, estreitou nossos caminhos, entristeceu nossos sorrisos. Viramos o país das festas sem festas; a nação dos encontros sem encontros; o povo dos abraços sem abraços. E nada aprendemos.
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