sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Flávia Oliveira - Um ano depois, nada aprendemos

- O Globo

No Brasil, há crença de que o ano começa depois do carnaval. O calendário da festa que não houve chegou ao fim, e o país conseguiu a proeza de reiniciar o ano velho. Em março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde declarou que a Covid-19 era uma pandemia, o novo coronavírus já estava em transmissão comunitária no país, e a primeira morte se avizinhava. Adentramos a crise sanitária com estrutura de atendimento insuficiente, economia patinando, rede de proteção social desmontada, ambiente político instável. Quase 12 meses e mais de 242 mil mortes depois, assistimos à suspensão da vacinação por falta de imunizante, ao Produto Interno Bruto desacelerando, à inflação em alta, ao auxílio emergencial interrompido — e por ser relançado. Nada aprendemos.

Um ano atrás, evoquei o tetraedro como figura geométrica apropriada a representar o ambiente que se avizinhava. O Brasil enfrentava uma crise com quatro faces: sanitária, econômica, social, política. Sob pressão da sociedade civil e de membros do Parlamento, o governo produziu respostas importantes, mas não suficientes. Mal planejadas, elaboradas sem cuidado, tiveram impacto localizado, muito em razão da sabotagem contínua do presidente da República às recomendações de distanciamento social e isolamento. Foi possível preservar empregos formais com os acordos de redução de jornada e salário, aplacar o aumento da pobreza com parcelas do auxílio emergencial, ampliar a oferta de leitos de enfermaria e UTI. Tudo por algum tempo.

A incompetência ativa do governo federal na crise sanitária alcançou a atividade econômica. A recuperação do PIB no terceiro trimestre perdeu força nos últimos meses de 2020. O país terminou o ano com saldo positivo de 142 mil vagas com carteira assinada, num sinal de que a tempestade que dizimara quase 1,5 milhão de postos formais nos três primeiros meses da pandemia fora superada. Se revela uma foto, a informação esconde o filme. Houve resultado positivo na construção (112.174), na indústria (95.588), na agropecuária (61.637), no comércio (8.130). Nos serviços, maior empregador e alavanca do PIB, responsável por três quartos da atividade, o saldo de contratações e demissões ficou negativo em 132.584 empregos.

Não é difícil de entender. O setor depende fortemente da circulação de pessoas — vide turismo, cultura e entretenimento, transportes. Conecta-se, portanto, às condições sanitárias. Não foi à toa que o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, relacionou a vacinação em massa à retomada da economia. Negligenciada a saúde da população, a atividade definhou. Os indicadores antecedentes do início do ano mostram arrefecimento; já são duas semanas seguidas de revisão (para baixo) na projeção de crescimento em 2021 no boletim Focus. De quebra, a redução à metade, em setembro, e o fim do auxílio emergencial, em dezembro, segundo a FGV Social, elevou em 16,9 milhões o número de brasileiros que vivem com menos de R$ 246 per capita por mês.

Uma tempestade perfeita engolfou o Brasil neste primeiro bimestre. No eixo socioeconômico, a vulnerabilidade social aumentou, o desemprego segue no maior nível desde 2012, o custo de vida sobe com reajustes dos combustíveis, da energia e dos alimentos. A pandemia recrudesceu na forma de uma segunda onda, que se espalha com cepas mais transmissíveis do coronavírus; governadores se queixam de cortes de verbas que ameaçam a oferta de leitos de internação nos hospitais. A vacinação em massa, necessária para frear o avanço da doença, esbarra na falta de imunizantes. Até aqui, o Brasil recebeu 12,1 milhões de doses (dez milhões ofertadas pelo Instituto Butantan, de São Paulo), suficientes para imunizar fração modesta de uma população superior a 210 milhões de habitantes.

O governo federal gastou recursos produzindo e saliva recomendando medicamentos que a ciência não reconhece como eficazes no combate à Covid-19, ao mesmo tempo que negligenciou o investimento num leque de vacinas. Desmoralizou o Programa Nacional de Imunização, um dos orgulhos do arcabouço de políticas públicas do país. Com campanhas maciças de vacinação, o Brasil erradicou a poliomielite e, até três anos atrás, o sarampo. Houvesse doses, conseguiria vacinar até dois milhões de pessoas por dia. Vacinou pouco mais de cinco milhões em um mês, porque escolheu um governante insensível e inepto, Jair Bolsonaro. Os EUA, no mesmo período, defenestraram Donald Trump, outro negacionista globalmente conhecido. O agora presidente Joe Biden anunciou plano para vacinar cem milhões de americanos em cem dias de governo, marca facilmente alcançável por um Brasil que deixou de existir.

O país é hoje refém de um interminável Dia da Marmota, referência ao filme “Feitiço do tempo” (1993), em que o protagonista Bill Murray dorme e acorda na mesma data. Só se liberta quando aprende a lição. Os brasileiros adentramos o segundo ano de um ciclo nefasto que ceifou vidas, empobreceu nossas casas, estreitou nossos caminhos, entristeceu nossos sorrisos. Viramos o país das festas sem festas; a nação dos encontros sem encontros; o povo dos abraços sem abraços. E nada aprendemos.

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