sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Nelson Motta - Dois casais e uma quarentena

- O Globo

Além da devastação econômica e das vidas perdidas na pandemia, me lembro de duas histórias sobre os efeitos do amor à distância. Ou perto demais

Além da devastação econômica e das vidas perdidas na pandemia, a quarentena gerou todo tipo de relatos reais e ficcionais do confinamento, na TV, nos jornais, blogs e redes sociais. E me lembro de duas histórias sobre os efeitos do amor à distância. Ou perto demais.

Um casal amigo, os dois na faixa dos quarenta, que vive junto há quatro anos, há algum tempo vem se afastando e se desgastando em intermináveis DRs, e sobrevivia com cada um mergulhado em seu trabalho o dia inteiro, com pouco espaço para convivência, discussões e brigas. Eles sabiam que o casamento já era, e nenhum acreditava em um reset positivo, mas mesmo assim viviam um arranjo em que fingiam acreditar que funcionava, ainda unidos por restos, ou hábitos, de uma atração sexual. Mas o confinamento atingiu-os em cheio, com os dois em home office, tornando obrigatória a convivência 24 horas por dia, como um Big Brother sem câmeras.

Deixo para a imaginação do leitor as cenas de bate-boca, barracos e trocas de acusações e ofensas numa interminável revisão de brigas passadas, presos na mesma cadeia de frustrações e ressentimentos. Depois de algum tempo passaram a se comunicar por WhatsApp. Quem faz o mercado. Quem limpa a casa. Quem foi mesmo que disse “O inferno são os outros”? O Google diz que foi Jean-Paul Sartre, filósofo do existencialismo, que acreditava que a forma que se leva a existência precede a nossa essência humana. Os dois sentiam isso na carne.

Existencialistas informais, eles desprezavam as convenções sociais, consideravam o casamento civil e religioso instituições falidas, bastaria morarem juntos. O que valia era o amor e o projeto de felicidade. Logo descobriram que o problema não era receber benção ou assinar papel, mas viver sob o mesmo teto.

Outro casal de amigos, os dois nos cinquenta, que há quatro anos vive um casamento interestadual, ela no Rio e ele em Brasília, sem nenhuma intenção de viverem juntos (talvez na mesma cidade, mas nunca juntos ), está acostumado a conviver por alguns dias, dois fins de semana por mês, ou em viagens de férias, por isso valorizam o precioso tempo juntos, não sofrem o desgaste da mediocridade do cotidiano conjugal, cada um administra sua casa e sua vida como quer.

O isolamento os aproximou ainda mais, intensificou as trocas de mensagens, vídeos, fotos, promessas de felicidade a que estavam acostumados. Parece que algumas pessoas se sentem mais livres e à vontade em se comunicar por escrito, podem pensar no que escrever, no que responder, multiplicando as afinidades e declarações de amor e de humor, minimizando as discussões perigosas e inúteis. No caso deles, cinco meses de separação fortaleceram o amor e ampliaram e aprofundaram o conhecimento e a aceitação do outro.

Só depois que ela teve Covid, mas leve, e ele, assintomático, puderam enfim se encontrar no Rio. Deixo para a imaginação do leitor a intensidade das cenas de amor e a certeza de que a distância e a saudade são o mais infalível e insuperável dos afrodisíacos.

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