Na
última sexta-feira, a Suprema Corte do Reino Unido decidiu que o Uber deve
tratar seus motoristas como funcionários. Ou seja: direitos trabalhistas. A
decisão abrange Inglaterra, Escócia, Gales e Irlanda do Norte. E é final, não
cabe recurso. A Suprema Corte francesa já havia tomado decisão semelhante,
assim como a da Espanha. Um processo do tipo está em curso no Canadá e em
diversos estados americanos. Evidentemente que nova legislação pode reverter
esse curso — mas esta é uma das mais relevantes discussões em curso no mundo
atualmente. Uma discussão ausente no Brasil.
Este
é um dos grandes custos que o bolsonarismo impõe ao Brasil. O país se perde em
discussões irrelevantes a cada crise vazia — e crise nova há, muitas vezes
parece, dia sim, dia não. O Brasil se perde, também, em debates que nem sequer
deveriam existir — como o da defesa do meio ambiente, o do armamentismo
desenfreado ou, pasme, até o da manutenção da democracia. Enquanto isso, lá
fora, o século 21 corre solto impondo suas transformações.
A
questão no centro da decisão da Justiça britânica não tem a ver com o Uber. Tem
a ver com a reinvenção do trabalho. Não é um debate simples.
O Uber argumenta aquilo que a maioria dos aplicativos do tipo dizem. Ele oferece uma tecnologia que permite a pequenos empreendedores que encontrem com mais facilidade seus clientes. Une duas pontas. Isso é verdade. Assim como é verdade que, diferentemente de uma relação normal de trabalho, os motoristas trabalham quando querem.
Os
motoristas que foram à Justiça, porém, chamam atenção para outros pontos. É o
Uber que dita o preço da corrida, é ele que coleta o dinheiro, pune motoristas
que recusam chamadas e impõe um sistema de notas, que pode custar a quem dirige
a expulsão da plataforma. Um empreendedor, por meio de seu engenho, tem
oportunidades de crescer. O motorista ganhará sempre o mesmo que os outros, e
seu maior esforço tem, na vida real, uma única premiação. Poder continuar
trabalhando. E não é pouco: em geral, esses apps escravizam quem precisa manter
uma renda digna.
A
Justiça britânica então decidiu que o Uber terá de garantir um salário mínimo
por hora trabalhada — e a hora trabalhada vale quando o motorista liga o app.
Dá direito também a não trabalhar quando se está doente, a férias e plano de
previdência. O Uber responde que, em momentos de ociosidade, quando há mais
motoristas do que passageiros, se verá obrigado a impedir muitos de acessar a
plataforma. Se não, o negócio se tornará inviável.
A
discussão é de uma complexidade imensa por muitos motivos. O principal é o
seguinte: os carros autônomos já existem. Ainda antes de 2030, não haverá mais
motoristas. O mesmo vale para os apps de entrega e tantos outros. O processo de
automação de muitos desses serviços apenas começou e está para ser acelerado.
A
lógica dos direitos trabalhistas que temos hoje depende de uma sociedade
industrial em que grandes empresas contratam massas de pessoas para produzir.
Na economia digital, grandes empresas contratam uma fração de pessoas. A força
dos grandes sindicatos só vai diminuir, pois cada vez mais o trabalho será mais
fragmentado e distribuído. Aquele Estado de bem-estar social não é mais
sustentável. Tem de ser pensado outro.
O laissez-faire não é a solução.
O que aconteceu nas décadas de 1920 e 30 no mundo, com a ascensão de governos
autoritários e totalitários foi justamente fruto de uma crise de emprego que
levou gente em desespero a virar as costas para a democracia liberal. Não é à
toa que estamos vivendo uma versão daquilo.
O Estado tem de ser reinventado, assim como empresas e sociedade. No Brasil, claro, estamos ainda discutindo o papel social de uma petroleira estatal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário