- Valor Econômico
Governos escapavam do TCU, mas do Riba,
jamais!
Governos fiscalmente irresponsáveis
escapavam do escrutínio dos órgãos de controle do Estado brasileiro, como o
temido Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria-Geral da União
(CGU), mas do olhar implacável do jornalista Ribamar Oliveira, jamais. Depois
de lutar bravamente por quase 50 dias contra a Covid, num hospital de Brasília,
o Riba partiu no fim da tarde de ontem.
A importância do Ribamar para a história
recente deste país, governado por um presidente negacionista que, desde o
início da pandemia, faz cálculo político da tragédia e, por essa razão, nunca
verteu uma lágrima pelos 465.312 compatriotas mortos pelo coronavírus até
agora, é incomensurável. O trabalho insistente e acurado do repórter em vários
momentos da vida nacional teve influência decisiva no aperfeiçoamento
institucional da gestão da coisa pública neste imenso povoado a que chamamos de
Brasil.
Comecemos em flashback. Coube ao Riba,
repórter especial e colunista semanal do Valor, denunciar, pouco antes de ser diagnosticado
com o novo coronavírus, ardil que se armou no Congresso Nacional e dentro do
governo, para favorecer a liberação ilegal de verbas para obras previstas em
emendas de parlamentares ao Orçamento.
Há especialistas bem remunerados em orçamento no parlamento e no Poder Executivo, mas nenhum deles viu que, feitas as contas - coisa que o Riba fazia com paciência e precisão de relojoeiro suíço -, o relator da lei orçamentária, senador Márcio Bittar (DEM-AC), pressionado pelo Palácio do Planalto e por congressistas, dobrou o volume de recursos previstos para pagar as emendas. Mas, de que rubrica do orçamento Bittar remanejou verbas, uma vez que dinheiro não dá em árvore, apesar da crença de parlamentares patrimonialistas - à esquerda e à direita (e ao centro também) do espectro político nacional - no milagre da multiplicação do dinheiro público?
Na redação, o Riba encantava a todos com
seu entusiasmo quase juvenil pela notícia quentinha, recém apurada. Depois de
circular por gabinetes da República em busca de sua matéria-prima - o
"furo", a informação inédita -, ele despejava sobre sua mesa quilos
de papéis com tabelas, gráficos... Compenetrado, tirava os óculos e os segurava
com a boca para facilitar a leitura de números e letras miúdos. Passado algum
tempo, eureca! Nosso especialista em notícia saltava da cadeira e às carreiras,
já perto do fechamento da primeira edição do jornal, corria aos chefes da
sucursal para revelar nova descoberta - em geral, de alguma artimanha
engendrada em Brasília para nos fazer pagar mais impostos e/ou amargar a piora
de algum serviço público atingido por cortes de recursos, medidas adotadas para
beneficiar interesses de grupos específicos com forte presença no centro do
poder.
Testemunhar o Ribamar em ação era
fascinante. Porque sabíamos que, dali, muitas vezes sem entender no início tudo
o que ele apurava, sairia coisa grande, a dominar o noticiário nos dias e
semanas seguintes. Na última apuração, o Ribinha desnudou a "mágica"
que fez o butim das emendas saltar de R$ 16 bilhões para R$ 32 bilhões. Uma das
manobras foi fixar em março, no orçamento que deveria ter sido aprovado em
dezembro, um valor para o salário mínimo menor do que aquele que já vigorava
desde 1º de janeiro. A diferença "liberou" bilhões de reais para as
emendas.
O erro supostamente grosseiro passou despercebido
das autoridades competentes, mas não do olhar sempre desconfiado de Ribamar
Oliveira, eleito, em 2016, o jornalista do ano pela Ordem dos Economistas do
Brasil. Na capital da República, leis formuladas com um propósito são aprovadas
repletas de jabutis que ou descaracterizam seu objetivo original ou trazem
novidades sem nenhuma ligação com aquele assunto.
A revelação provocou crise que atritou o
presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o ministro da Economia, Paulo
Guedes, e este com um colega de governo, o ministro Rogério Marinho, do
Desenvolvimento Regional. A contenda só foi resolvida um mês depois, quando o
colunista do Valor começou
a sentir os primeiros sintomas da covid.
No primeiro mandato da presidente Dilma
Rousseff (2011-2014), este país destinado a nunca ser nação iniciou solenemente
sua trajetória à ruína econômica depois de viver anos de euforia sob a gestão
de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Eleita pelo programa econômico de seu
antecessor e padrinho político, Dilma fez o impensável _ mudar tudo, um
mistério que, pela absoluta ausência de sentido, ainda precisa ser explicado.
Para um jornalista, nada mais emocionante e
proveitoso do que cobrir governos que geram muita notícia, embora, no fim do
dia, conscientes das tragédias em construção, tornemo-nos pesarosos e
frustrados por testemunhar o fracasso de um povo em sua maioria pobre, vivendo
num dos pedaços de terra mais riscos do planeta. Riba teve muito trabalho
durante a gestão Dilma porque, além de jogar a economia numa recessão longa e
profunda, o governo tentou enganar o distinto público, primeiro, com maquiagem
das contas fiscais, depois, com "pedaladas fiscais".
As pedaladas consistiram no uso de bancos
oficiais, pelo Tesouro Nacional, para pagar despesas de programas federais.
Isso pode, Riba? "Pode não", respondia ele. Governos não podem ser
financiados por instituições financeiras nas quais detém o controle acionário,
ensinava ele. Nos tempos de hiperinflação, isso era permitido, inclusive na
relação entre os Estados e seus bancos, e, por isso, tornou-se uma das
principais fontes do descontrole monetário.
Foi Ribamar Oliveira quem descobriu a
manobra e, primeiro, cunhou a expressão "pedalada fiscal", expediente
que acabou sendo usado como justificativa técnica para o impeachment da
presidente Dilma em 2016. Ora, duas décadas antes, Riba investigou meses a fio,
solitariamente, escândalo _ o dos precatórios _ que gerou uma CPI, responsável
por causar enorme barulho na vida política nacional e, mais tarde, mudanças nas
leis para evitar a repetição do delito.
O ex-ministro Delfim Netto, um dos
incontáveis fãs do Riba, costumava surpreender interlocutores sabidamente
próximos do jornalista com uma pergunta súbita. "Você sabe quem é a fonte
do Ribamar no Tesouro?", indagava Delfim, com seu forte sotaque de
paulistano nascido e criado no bairro do Cambuci, reduto de imigrantes
italianos na primeira metade do século passado. "Ministro, é mais fácil
descobrir quem não é fonte de informação do Ribamar não só no Tesouro, mas em
qualquer órgão da administração pública que cuide de contas públicas",
esclareceu um desses interlocutores.
Ribamar foi vítima do negacionismo do presidente que nos governa. Ele foi embora ontem, deixando um vazio imenso em todos nós. E como dói.
Um comentário:
Perfeita a decrição do Ribamar. Cobri Fazenda e Banco Central com ele. Era tudo isso que foi dito acima. Às vezes, quando nós mesmos fazíamos os cálculos, íamos atrás dele para ver se batia. Foi um grande jornalista, e um amigo sério e dileto. A forma de trabalhar do Ribamar é um método a ser ensinado nas escolas de Jornalismo.
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