quarta-feira, 2 de junho de 2021

Cristiano Romero - Ribamar Oliveira

- Valor Econômico

Governos escapavam do TCU, mas do Riba, jamais!

Governos fiscalmente irresponsáveis escapavam do escrutínio dos órgãos de controle do Estado brasileiro, como o temido Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria-Geral da União (CGU), mas do olhar implacável do jornalista Ribamar Oliveira, jamais. Depois de lutar bravamente por quase 50 dias contra a Covid, num hospital de Brasília, o Riba partiu no fim da tarde de ontem.

A importância do Ribamar para a história recente deste país, governado por um presidente negacionista que, desde o início da pandemia, faz cálculo político da tragédia e, por essa razão, nunca verteu uma lágrima pelos 465.312 compatriotas mortos pelo coronavírus até agora, é incomensurável. O trabalho insistente e acurado do repórter em vários momentos da vida nacional teve influência decisiva no aperfeiçoamento institucional da gestão da coisa pública neste imenso povoado a que chamamos de Brasil.

Comecemos em flashback. Coube ao Riba, repórter especial e colunista semanal do Valor, denunciar, pouco antes de ser diagnosticado com o novo coronavírus, ardil que se armou no Congresso Nacional e dentro do governo, para favorecer a liberação ilegal de verbas para obras previstas em emendas de parlamentares ao Orçamento.

Há especialistas bem remunerados em orçamento no parlamento e no Poder Executivo, mas nenhum deles viu que, feitas as contas - coisa que o Riba fazia com paciência e precisão de relojoeiro suíço -, o relator da lei orçamentária, senador Márcio Bittar (DEM-AC), pressionado pelo Palácio do Planalto e por congressistas, dobrou o volume de recursos previstos para pagar as emendas. Mas, de que rubrica do orçamento Bittar remanejou verbas, uma vez que dinheiro não dá em árvore, apesar da crença de parlamentares patrimonialistas - à esquerda e à direita (e ao centro também) do espectro político nacional - no milagre da multiplicação do dinheiro público?

Na redação, o Riba encantava a todos com seu entusiasmo quase juvenil pela notícia quentinha, recém apurada. Depois de circular por gabinetes da República em busca de sua matéria-prima - o "furo", a informação inédita -, ele despejava sobre sua mesa quilos de papéis com tabelas, gráficos... Compenetrado, tirava os óculos e os segurava com a boca para facilitar a leitura de números e letras miúdos. Passado algum tempo, eureca! Nosso especialista em notícia saltava da cadeira e às carreiras, já perto do fechamento da primeira edição do jornal, corria aos chefes da sucursal para revelar nova descoberta - em geral, de alguma artimanha engendrada em Brasília para nos fazer pagar mais impostos e/ou amargar a piora de algum serviço público atingido por cortes de recursos, medidas adotadas para beneficiar interesses de grupos específicos com forte presença no centro do poder.

Testemunhar o Ribamar em ação era fascinante. Porque sabíamos que, dali, muitas vezes sem entender no início tudo o que ele apurava, sairia coisa grande, a dominar o noticiário nos dias e semanas seguintes. Na última apuração, o Ribinha desnudou a "mágica" que fez o butim das emendas saltar de R$ 16 bilhões para R$ 32 bilhões. Uma das manobras foi fixar em março, no orçamento que deveria ter sido aprovado em dezembro, um valor para o salário mínimo menor do que aquele que já vigorava desde 1º de janeiro. A diferença "liberou" bilhões de reais para as emendas.

O erro supostamente grosseiro passou despercebido das autoridades competentes, mas não do olhar sempre desconfiado de Ribamar Oliveira, eleito, em 2016, o jornalista do ano pela Ordem dos Economistas do Brasil. Na capital da República, leis formuladas com um propósito são aprovadas repletas de jabutis que ou descaracterizam seu objetivo original ou trazem novidades sem nenhuma ligação com aquele assunto.

A revelação provocou crise que atritou o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o ministro da Economia, Paulo Guedes, e este com um colega de governo, o ministro Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional. A contenda só foi resolvida um mês depois, quando o colunista do Valor começou a sentir os primeiros sintomas da covid.

No primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff (2011-2014), este país destinado a nunca ser nação iniciou solenemente sua trajetória à ruína econômica depois de viver anos de euforia sob a gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Eleita pelo programa econômico de seu antecessor e padrinho político, Dilma fez o impensável _ mudar tudo, um mistério que, pela absoluta ausência de sentido, ainda precisa ser explicado.

Para um jornalista, nada mais emocionante e proveitoso do que cobrir governos que geram muita notícia, embora, no fim do dia, conscientes das tragédias em construção, tornemo-nos pesarosos e frustrados por testemunhar o fracasso de um povo em sua maioria pobre, vivendo num dos pedaços de terra mais riscos do planeta. Riba teve muito trabalho durante a gestão Dilma porque, além de jogar a economia numa recessão longa e profunda, o governo tentou enganar o distinto público, primeiro, com maquiagem das contas fiscais, depois, com "pedaladas fiscais".

As pedaladas consistiram no uso de bancos oficiais, pelo Tesouro Nacional, para pagar despesas de programas federais. Isso pode, Riba? "Pode não", respondia ele. Governos não podem ser financiados por instituições financeiras nas quais detém o controle acionário, ensinava ele. Nos tempos de hiperinflação, isso era permitido, inclusive na relação entre os Estados e seus bancos, e, por isso, tornou-se uma das principais fontes do descontrole monetário.

Foi Ribamar Oliveira quem descobriu a manobra e, primeiro, cunhou a expressão "pedalada fiscal", expediente que acabou sendo usado como justificativa técnica para o impeachment da presidente Dilma em 2016. Ora, duas décadas antes, Riba investigou meses a fio, solitariamente, escândalo _ o dos precatórios _ que gerou uma CPI, responsável por causar enorme barulho na vida política nacional e, mais tarde, mudanças nas leis para evitar a repetição do delito.

O ex-ministro Delfim Netto, um dos incontáveis fãs do Riba, costumava surpreender interlocutores sabidamente próximos do jornalista com uma pergunta súbita. "Você sabe quem é a fonte do Ribamar no Tesouro?", indagava Delfim, com seu forte sotaque de paulistano nascido e criado no bairro do Cambuci, reduto de imigrantes italianos na primeira metade do século passado. "Ministro, é mais fácil descobrir quem não é fonte de informação do Ribamar não só no Tesouro, mas em qualquer órgão da administração pública que cuide de contas públicas", esclareceu um desses interlocutores.

Ribamar foi vítima do negacionismo do presidente que nos governa. Ele foi embora ontem, deixando um vazio imenso em todos nós. E como dói.

Um comentário:

Aylê-Salassié disse...

Perfeita a decrição do Ribamar. Cobri Fazenda e Banco Central com ele. Era tudo isso que foi dito acima. Às vezes, quando nós mesmos fazíamos os cálculos, íamos atrás dele para ver se batia. Foi um grande jornalista, e um amigo sério e dileto. A forma de trabalhar do Ribamar é um método a ser ensinado nas escolas de Jornalismo.