- Folha de S. Paulo
Um dia, ainda veremos Bolsonaro de dedo no
nariz de um deles
Foi num dia de semana à tarde, em 1970,
auge da ditadura —me contaram. Um garoto de seus 15 anos ganhou uma flautinha
de plástico e foi à praia com ela. Sentado na areia, numa Ipanema vazia, tentou
tirar o Hino Nacional —afinal, ouvia-o todo dia. Ao extrair algo parecido com a
frase inicial, percebeu uma sombra entre ele e o Sol. Olhou para cima e viu um
sujeito forte, bronzeado, de cabelo reco. O homem rugiu: "Por que está
tocando isso?". O garoto, surpreso, ficou mudo. Não havia resposta. O homem
emendou: "Estou ali naquela barraca escutando tudo. Se continuar com
gracinha vai se dar mal!". Um vendedor de mate sussurrou para o garoto:
"Coronel do Exército".
É típico das ditaduras se apoderarem dos símbolos nacionais. O Brasil de Médici era uma diarreia verde-amarela. Uma geração de escolares foi submetida a anos de bandeira e hino diários, de pé, no pátio do colégio. Talvez por isso, um garoto de cabelo comprido tocando o Hino Nacional na praia pudesse ser um deboche, uma contestação.
O governo Bolsonaro não é uma ditadura
—ainda. Mas, em algumas matérias, já se comporta como. Assenhorou-se, por
exemplo, das cores nacionais e de conceitos como "povo",
"democracia" e "liberdade" e da expressão "homem de
bem". São "homens de bem" os que, contra a corrupção do PT,
apoiam o extermínio de brasileiros pela Covid, promovido por ele.
Mas, agora, Bolsonaro se superou.
Apropriou-se daquele que se considera o detentor do monopólio dos símbolos —o
próprio Exército. Do mais tosco soldado ao
mais empafiado
general, Bolsonaro embolsou-os com benesses, empregos, cargos e uma
ideologia intangível, em nome da qual passou a ditar-lhes o regulamento e
fazê-los abdicar até de uma de suas cláusulas pétreas: a disciplina.
Os milicos que se cuidem. Um dia, ainda veremos Bolsonaro de dedo no nariz de um deles por tocar o Hino numa flautinha de plástico.
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