quarta-feira, 2 de junho de 2021

Ivan Alves Filho* - Populismo nunca mais

O Campo Democrático tem que se desvencilhar, o mais rapidamente possível, de toda e qualquer ilusão com o chamado populismo, seja ele de "direita" ou de "esquerda". Isto, caso queira de fato se apresentar como uma opção entre o governo atual - que flerta o tempo todo com o autogolpe - e os desmandos do chamado lulismo - que se comprometeu com a corrupção e o próprio autoritarismo. 

Neste sentido, o encontro de Fernando Henrique Cardoso com Lula da Silva soa como uma advertência para lá de negativa. Quase um manual de como não devemos fazer as coisas andarem em matéria de política democrática. Afinal, nenhum dos dois tem condições de apontar caminhos futuros. E com que moral o teriam? Se Fernando Henrique Cardoso atropelou a Constituição de 1988 para passar a boiada da reeleição e paralelamente manipulou a cotação do dólar no final do seu primeiro governo, Lula da Silva sequer quis reconhecer esta mesma Constituição, quando de sua promulgação.

Ambos contribuíram para lançar um descrédito profundo sobre as instituições, hoje sob constante ameaça de Bolsonaro e seus seguidores. Lula da Silva chegou a abandonar um mandato de deputado federal, alegando seu desconforto em conviver com  "300 picaretas" no Congresso Nacional. Um gesto político que simplesmente achincalhava com a luta de tantos homens pelo restabelecimento da Democracia, sendo que alguns até pagaram com a própria vida, como o operário metalúrgico de São Bernardo do Campo, o comunista Manoel Fiel Filho, trucidado em 1976. 

Os governos comandados por Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e Dilma Rousseff praticamente nada fizeram para alterar o modelo econômico imposto à nação em 1964, a ponto de o Brasil ser considerado o segundo pior país do mundo em matéria de distribuição de renda. O subdesenvolvimento, como diria Nelson Rodrigues, não se improvisa...

Os dados são de um relatório da ONU, datado de 9 de maio de 2021: ínfimos 1% da população brasileira detém mais recursos que 28,3% dentre nós. Não podemos brigar com os fatos. Só perdemos para o Cartar e mesmo assim por muito pouco. O fato é que para os demagogos a miséria nada mais é do que uma reserva de mercado de votos. Combatê-la de frente pressupõe matar a galinha dos ovos de ouro. Os chamados invisíveis que assombram o Brasil da pandemia são um retrato desta situação, do conluio perverso das sucessivas administrações com os representantes do poder econômico. 

Mensalão, petrolão, acordos com certas áreas políticas e empresariais contaminadas pela corrupção são a expressão mais direta disso. Ao analisar a derrota francesa frente à ocupação hitlerista do seu país, o historiador Marc Bloch não titubeou: a corrupção dos governos anteriores arrebentaram com a unidade nacional, quebraram a autoestima do país. Daí eu imaginar que um retorno a esse estado de coisas signifique admitir o risco de uma tragédia semelhante àquela da volta de Vargas ao poder em 1951. Populismo nunca mais, venha de onde vier. Na maior parte das vezes, o populismo é o fascismo que não ousa dizer o nome. 

 Com exceção do Governo Itamar - que promoveria uma distribuição de renda por intermédio do Plano Real e criaria ainda o Ministério do Meio Ambiente, duas áreas extremamente sensíveis nos tempos em que vivemos, nem é preciso lembrar - e também do Governo Sarney – em que houve a Constituinte que legou a Carta Magna Cidadã ao país -, os demais governos da redemocratização falharam muito. Dois deles foram inclusive impedidos de prosseguir em seus desmandos e malfeitos (Collor e Dilma). Não adianta tapar o sol com a peneira. Precisamos dotar novamente o país de um projeto de corte reformador, retomando o fio da meada, ou seja, as reformas de estrutura ainda hoje sem resposta. Neste sentido, talvez tenhamos perdido uma oportunidade em 2014, com o drama que se abateu sobre a candidatura de Eduardo Campos. 

Penso que ainda temos tempo para construir um arco de alianças que unifique o Campo Democrático, reunindo as mais diferentes sensibilidades. Alguns setores são mais democráticos no plano da política? São sim. Outros têm mais sensibilidade social ou econômica? Têm sim. Mas a base democrática comum pode uni-los. Partido ou nomes? Vamos lá: Cidadania, Rede, PV, PSB, setores talvez majoritários do PSDB, setores talvez minoritários do DEM e do MDB, PCdoB, PDT. Creio que devemos excluir desse arco a maioria dos dirigentes do PT, mas não o eleitorado do PT, que pode e deve ser ganho para a política de valorização da Democracia enquanto conquista maior da Civilização.

Nomes? Penso ser possível juntar, numa plataforma governamental comum, homens públicos como Tasso Jereissati, Roberto Freire, Flávio Dino, Cristovam Buarque, Luiz Henrique Mandetta, Randolfe Rodrigues, Carlos Siqueira, Eduardo Leite, Ciro Gomes, Simone Tebet, Eliziane Gama, Marina Silva, Carlos Alberto dos Santos Cruz e José Luiz Penna, entre tantas outras figuras de expressão. Caberia a eles e aos seus respectivos partidos elaborar um programa de ação, desatando os nós que estrangulam o desenvolvimento nacional, em todos os terrenos. Temos intelectuais e técnicos preparados para  esmiuçar um conjunto de reformas. E quero lembrar especialmente aqui a importância histórica de militares comprometidos com o destino democrático do país, como o marechal Lott e o general Euler Bentes, que se posicionaram pela legalidade em momentos difíceis da vida nacional. Vamos precisar de militares da grandeza deles, mais uma vez. 

Se, de uma parte, se revela fundamental valorizar o quadro institucional, de outra parte, temos de apostar na valorização da saúde, da educação, da segurança e dos meios de sobrevivência da população. Criar em suma uma Frente Ampla que vá além do combate tático à ameaça populista ou fascistóide, desembocando num compromisso estratégico de governo. Isto é, uma Frente Ampla que saiba se manter unida na oposição, mas que também crie os mecanismos para governar o país e ser assim situação. Uma Frente Ampla pela democratização da vida em todos os planos.   

Moacyr Longo, a quem muito respeito por sua dedicação de décadas à causa da liberdade, vem batendo insistentemente na tecla de que necessitamos edificar uma Democracia de massas. Sob essa ótica, uma teoria das transformações sociais entre nós é mais imprescindível do que nunca. O fato é que estamos perdendo a nossa autoestima, vivendo em um país cada dia mais embrutecido, e isto é demonstrado pela violência que nos assola e até pela feiúra reinante em nossas cidades, particularmente nas periferias das capitais, quase sempre abandonadas à própria sorte.

Não podemos mais conviver com o desmatamento, o desemprego, a corrupção desenfreada, as desigualdades sociais, o racismo. O que teremos de enfrentar vai exigir de nós uma capacidade muito grande de negociação política e uma compreensão aguçada da amplitude dos desafios. A automação e a velocidade das transformações tecnológicas em curso dão a medida de alguns desses desafios.

Gostaria de terminar este artigo, reproduzindo o que escrevi em meu último livro, A saída pela democracia: 

"Penso que um denominador comum possível seja a cidadania. Seu vínculo com o mundo do trabalho pode ser feito por intermédio da Constituição. Sua ligação com cada um de nós, individualmente falando, pode ser realizada por meio das lutas identitárias, incluindo aí a cultura como pertencimento. Seu elo com as liberdades se dar pela defesa dos direitos de ir e vir das pessoas. A cidadania pode ser o grande fator estruturante da participação popular pelas mudanças. Ela perpassa o sistema de classes; como conquista do processo civilizatório não é monopólio de classe alguma. É um patrimônio de todos". 

O Campo Democrático, equidistante de todo tipo de populismo, não pode falhar. 

*Jornalista, historiador e escritor

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