Neste sentido, o encontro de Fernando Henrique Cardoso com Lula da
Silva soa como uma advertência para lá de negativa. Quase um manual de como não
devemos fazer as coisas andarem em matéria de política democrática. Afinal,
nenhum dos dois tem condições de apontar caminhos futuros. E com que moral o
teriam? Se Fernando Henrique Cardoso atropelou a Constituição de 1988 para
passar a boiada da reeleição e paralelamente manipulou a cotação do dólar no
final do seu primeiro governo, Lula da Silva sequer quis reconhecer esta mesma
Constituição, quando de sua promulgação.
Ambos contribuíram para lançar um descrédito
profundo sobre as instituições, hoje sob constante ameaça de Bolsonaro e seus
seguidores. Lula da Silva chegou a abandonar um mandato de deputado federal,
alegando seu desconforto em conviver com "300 picaretas"
no Congresso Nacional. Um gesto político que simplesmente
achincalhava com a luta de tantos homens pelo restabelecimento da Democracia,
sendo que alguns até pagaram com a própria vida, como o operário metalúrgico de
São Bernardo do Campo, o comunista Manoel Fiel Filho, trucidado em 1976.
Os governos comandados por Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e Dilma Rousseff praticamente nada fizeram para alterar o modelo econômico imposto à nação em 1964, a ponto de o Brasil ser considerado o segundo pior país do mundo em matéria de distribuição de renda. O subdesenvolvimento, como diria Nelson Rodrigues, não se improvisa...
Os dados
são de um relatório da ONU, datado de 9 de maio de 2021: ínfimos 1% da
população brasileira detém mais recursos que 28,3% dentre nós. Não podemos
brigar com os fatos. Só perdemos para o Cartar e mesmo assim por muito
pouco. O fato é que para os demagogos a miséria nada mais é do que uma
reserva de mercado de votos. Combatê-la de frente pressupõe matar a galinha dos
ovos de ouro. Os chamados invisíveis que assombram o Brasil da pandemia são um
retrato desta situação, do conluio perverso das sucessivas administrações com
os representantes do poder econômico.
Mensalão, petrolão,
acordos com certas áreas políticas e empresariais contaminadas pela corrupção
são a expressão mais direta disso. Ao analisar a derrota francesa frente à
ocupação hitlerista do seu país, o historiador Marc Bloch não titubeou: a
corrupção dos governos anteriores arrebentaram com a unidade nacional,
quebraram a autoestima do país. Daí eu imaginar que um retorno a esse estado de
coisas signifique admitir o risco de uma tragédia semelhante àquela da volta de
Vargas ao poder em 1951. Populismo nunca mais, venha de onde vier. Na
maior parte das vezes, o populismo é o fascismo que não ousa dizer o
nome.
Com
exceção do Governo Itamar - que promoveria uma distribuição de renda por intermédio
do Plano Real e criaria ainda o Ministério do Meio Ambiente, duas áreas
extremamente sensíveis nos tempos em que vivemos, nem é preciso lembrar - e
também do Governo Sarney – em que houve a Constituinte que legou a Carta Magna
Cidadã ao país -, os demais governos da redemocratização falharam muito. Dois
deles foram inclusive impedidos de prosseguir em seus desmandos e malfeitos
(Collor e Dilma). Não adianta tapar o sol com a peneira. Precisamos dotar
novamente o país de um projeto de corte reformador, retomando o fio da meada,
ou seja, as reformas de estrutura ainda hoje sem resposta. Neste sentido,
talvez tenhamos perdido uma oportunidade em 2014, com o drama que se abateu
sobre a candidatura de Eduardo Campos.
Penso
que ainda temos tempo para construir um arco de alianças que unifique o Campo
Democrático, reunindo as mais diferentes sensibilidades. Alguns setores são
mais democráticos no plano da política? São sim. Outros têm mais sensibilidade
social ou econômica? Têm sim. Mas a base democrática comum pode uni-los.
Partido ou nomes? Vamos lá: Cidadania, Rede, PV, PSB, setores talvez
majoritários do PSDB, setores talvez minoritários do DEM e do MDB, PCdoB, PDT.
Creio que devemos excluir desse arco a maioria dos dirigentes do PT, mas não o
eleitorado do PT, que pode e deve ser ganho para a política de valorização da
Democracia enquanto conquista maior da Civilização.
Nomes?
Penso ser possível juntar, numa plataforma governamental comum, homens públicos
como Tasso Jereissati, Roberto Freire, Flávio Dino, Cristovam Buarque, Luiz
Henrique Mandetta, Randolfe Rodrigues, Carlos Siqueira, Eduardo Leite, Ciro
Gomes, Simone Tebet, Eliziane Gama, Marina Silva, Carlos Alberto dos Santos
Cruz e José Luiz Penna, entre tantas outras figuras de expressão. Caberia
a eles e aos seus respectivos partidos elaborar um programa de ação, desatando
os nós que estrangulam o desenvolvimento nacional, em todos os terrenos. Temos
intelectuais e técnicos preparados para esmiuçar um conjunto de
reformas. E quero lembrar especialmente aqui a importância histórica
de militares comprometidos com o destino democrático do país, como o marechal
Lott e o general Euler Bentes, que se posicionaram pela legalidade em momentos
difíceis da vida nacional. Vamos precisar de militares da grandeza deles, mais
uma vez.
Se,
de uma parte, se revela fundamental valorizar o quadro institucional, de
outra parte, temos de apostar na valorização da saúde, da educação, da
segurança e dos meios de sobrevivência da população. Criar em suma uma Frente
Ampla que vá além do combate tático à ameaça populista ou
fascistóide, desembocando num compromisso estratégico de
governo. Isto é, uma Frente Ampla que saiba se manter unida na oposição,
mas que também crie os mecanismos para governar o país e ser assim situação.
Uma Frente Ampla pela democratização da vida em todos os planos.
Moacyr
Longo, a quem muito respeito por sua dedicação de décadas à causa da liberdade,
vem batendo insistentemente na tecla de que necessitamos edificar uma
Democracia de massas. Sob essa ótica, uma teoria das transformações sociais
entre nós é mais imprescindível do que nunca. O fato é que estamos perdendo a
nossa autoestima, vivendo em um país cada dia mais embrutecido, e isto é
demonstrado pela violência que nos assola e até pela feiúra reinante em nossas
cidades, particularmente nas periferias das capitais, quase sempre abandonadas
à própria sorte.
Não
podemos mais conviver com o desmatamento, o desemprego, a corrupção
desenfreada, as desigualdades sociais, o racismo. O que teremos de enfrentar
vai exigir de nós uma capacidade muito grande de negociação política e uma
compreensão aguçada da amplitude dos desafios. A automação e a velocidade das
transformações tecnológicas em curso dão a medida de alguns desses desafios.
Gostaria
de terminar este artigo, reproduzindo o que escrevi em meu último livro, A
saída pela democracia:
"Penso
que um denominador comum possível seja a cidadania. Seu vínculo com o mundo do
trabalho pode ser feito por intermédio da Constituição. Sua ligação com cada um
de nós, individualmente falando, pode ser realizada por meio das lutas
identitárias, incluindo aí a cultura como pertencimento. Seu elo com as
liberdades se dar pela defesa dos direitos de ir e vir das pessoas. A cidadania
pode ser o grande fator estruturante da participação popular pelas mudanças.
Ela perpassa o sistema de classes; como conquista do processo civilizatório não
é monopólio de classe alguma. É um patrimônio de todos".
O Campo Democrático, equidistante de todo tipo de populismo, não pode falhar.
*Jornalista, historiador e escritor
Nenhum comentário:
Postar um comentário