Valor Econômico
Comissão de Orçamento assopra e a de
inquérito, morde
A cena foi anotada por um interlocutor que
o visitou no Palácio do Planalto. No meio da manhã, um garçom entra com uma
bandeja com pães franceses cortados ao meio e leite condensado, à parte, para
ser despejado a gosto. Concluiu não apenas que não se trata de um hábito para
as câmeras como teve a certeza de que o presidente Jair Bolsonaro não mudou.
Continuou a ser o mesmo cadete dos hábitos gastronômicos, do vezo da
insubordinação e do gosto por bicos cultivados no Exército.
A sobrevivência deste Bolsonaro mostra um
presidente em busca de uma porta de saída que o preserve. Foi isso que fez como
capitão quando, condenado por unanimidade pelo Conselho de Justificação do
Exército, reverteu o revés no Superior Tribunal Militar com novos laudos sobre
croquis com os quais planejara explodir uma adutora. Foi isso também que fez,
na manhã de ontem, quando foi tomar café da manhã, sem leite condensado, com o
ex-presidente José Sarney, oráculo dos grandes acordos da República.
O dia que começou com o aconselhamento da ponderação terminou com a prisão de um pivô da CPI da Covid e uma nota açodada e ameaçadora do ministro da Defesa e dos três comandantes militares. A detenção do ex-diretor de logística do Ministério da Saúde Roberto Ferreira Dias mostrou que a busca de uma saída que acomode as tensões nunca pode deixar de contar com o imponderável. Da hora que saiu da casa de Sarney até a hora em que se reuniu com os comandantes, Bolsonaro migrou da busca de um acordo para tocar fogo nos militares que, mais uma vez, se deixaram levar pelos arroubos do capitão. A nota que repetiu, com o Senado, o desastre do gesto ameaçador ao Supremo no julgamento do habeas-corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Dias havia sido demitido pelo governo para
preservar o líder na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). A CPI esperava tirar dele
declarações incriminadoras contra a dobradinha entre os militares e Barros. Ao
fracasso do intento, somou-se o áudio do representante da Davati e cabo da PM,
Luiz Paulo Dominguetti, revelado pela jornalista Daniela Lima, da CNN,
desmentindo a versão de Dias sobre o encontro em que se tratou de propina na
venda da vacina da Covaxin.
Por mais breve e controversa que tenha
sido, a prisão esticou a corda. Dentro do próprio grupo de senadores de
oposição questionou-se a falta de isonomia com outros depoentes que faltaram
com a verdade na comissão. Decidiu-se, porém, em nome da unidade, preservar o
apoio ao senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente do colegiado. Os embates em
torno do fato, porém, descalibram o morde-assopra do cerco e da acomodação que
pautam Executivo e Congresso.
O dia começou no sopro. Quando Bolsonaro
deixou a casa de Sarney, a Comissão Mista de Orçamento do Congresso se reuniu
para sacramentar um acordo. A CMO elegeu a senadora Rose de Freitas (MDB-ES)
como presidente, e os deputados Juscelino Filho (DEM-MA) e Hugo Leal (PSD-MG)
como relatores, respectivamente, da Lei de Diretrizes Orçamentárias e do
Orçamento-Geral da União. Um pacto, costurado da noite da terça para a quarta,
retirara a postulação do senador Angelo Coronel (PSD-BA) à presidência,
designando-lhe a sub-relatoria de infraestrutura da comissão.
O acordo coincidiu com uma reaproximação
entre o governo e senador Davi Alcolumbre (DEM-AP). As relações haviam ficado
estremecidas depois da constatação, pelo Palácio do Planalto, de que a
inundação inédita do Senado por emendas parlamentares não redundou numa maioria
favorável ao governo na CPI. Como parte das emendas negociadas pelo relator são
transferidas diretamente para as prefeituras não fica o registro do parlamentar
que direcionou o recurso. Difícil cravar quanto falta para ser executado este
ano, mas a queixa geral dos senadores é que os deputados tomaram a dianteira na
fila.
No acordo da CMO pressupõe-se que
Alcolumbre, que perdera ingerência sobre a negociação de emendas para a
ministra da Secretaria de Governo, Flávia Arruda (PL-DF), retome as atribuições
com as quais seu sucessor, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), não se envolve
diretamente. A composição da CMO sugeria que o Senado, hoje a Casa mais
complicada para o presidente, teria um apelo de pacificação. No ano passado
foram executados R$ 35 bilhões em emendas, sendo R$ 19 bi destinados a emendas
de relator, que não deixam rastros. Quando se sabe que o censo foi postergado
por custar R$ 2 bilhões, dá para se ter uma ideia do quanto o Congresso tomou o
governo de assalto.
O acordo da CMO demonstrava que, acossado
pela CPI, pelas manifestações e pelas pesquisas, o presidente resolvera entregar
o que lhe resta de governo para o Congresso, acenando para uma reforma
ministerial no segundo semestre. A relação, porém, está longe de ser quitada. O
rolo da CPI só o comprova.
O áudio que resultou na prisão só alimenta
as expectativas em relação a outros indícios do gênero. Tome-se, por exemplo, a
gravação do deputado Luís Miranda (DEM-DF) da conversa com Bolsonaro. Apesar de
o deputado ter revelado a menção a Ricardo Barros, consta que dois outros
caciques, um do DEM do Senado, outro do PP da Câmara, foram mencionados no
gabinete presidencial como parte da trinca que comanda os negócios da Saúde. Se
o acordo da CMO sinaliza pacificação entre os grupos, a prisão de Dias
aumentará a tensão entre os senadores da CPI e o deputado Ricardo Barros
(PP-PR).
Não é só o Congresso que resiste à
acomodação. Basta ver o indiciamento do senador Renan Calheiros (MDB-AL) pela
PF. O ato não apenas esbarra na decisão do Supremo contra o indiciamento pela
polícia de autoridades com foro especial como não cumpre sua função de ameaçar
o Congresso. Com o desmonte promovido nos últimos anos, sob os auspícios do
governo, na legislação anticorrupção (mudança na lei da improbidade, fim da
prisão em segunda instância e desbaratamento das forças-tarefa do Ministério
Público) o rugido saiu rouco.
Como a Terra gira e a Lusitana roda, o mesmo Congresso que apoiou o desmonte do lavajatismo procedeu a uma rara prisão de depoente que negou um encontro. A força da gravidade favorece a acomodação, mas se Congresso tomasse gosto poderia até chegar àquele que nega o direito à vida. Só assim Bolsonaro receberia a lição que o Exército se negou a dar em seu capitão há quase 40 anos. A insubordinação cresceu junto com a ambição. Só o Exército se apequenou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário