Folha de S. Paulo
Bolsonaro tem de aproveitar cada minuto na
Presidência. Ninguém o chamará de mito na cadeia
Em 1872, o jovem Joaquim Nabuco, futuro
político e diplomata, publicou um livro de versos. Um dos poemas dizia: “Quem
passou pela vida em branca nuvem/ E em plácido repouso adormeceu/ Quem não
sentiu o frio da desgraça/ Quem passou pela vida e não sofreu/ Foi espectro de
homem, não foi homem/ Só passou pela vida, não viveu”. Bastou aquilo para
consagrá-lo —a qualquer lugar que fosse alguém se punha de pé, alçava a fronte
e declamava o poema. Os presentes deliravam. Nabuco é que, depois de algum
tempo, não suportava mais ouvi-lo. Mas tinha de ficar firme.
O mesmo com Juscelino Kubitschek. Já presidente, uma reles ponte ou torneira que inaugurasse era precedida de uma banda militar tocando a ciranda “Peixe Vivo” —“Como pode o peixe vivo/ Viver fora da água fria...”. Como inaugurava cinco obras por dia, ouvir a cantiga se tornou um suplício. Mas JK armava seu melhor sorriso e todos achavam que ele a adorava.
Louis Armstrong idem. A toda cidade que
chegasse, em qualquer país, era recebido no aeroporto por uma furiosa bandinha
tocando “When The Saints Go Marchin’ In”. Era preciso muita coragem para alguém
tocar trompete diante de Satchmo. Talvez por isso, saturado, ele tenha
resistido a gravar “When The Saints”, o que só fez em 1954.
E Adolf Hitler? Diante dele, seus liderados
tinham de bater os tacões, esticar o braço e gritar “Heil Hitler!”. Em
resposta, com nítida impaciência, Adolf só mostrava a palma da mão. Devia urrar
contra si próprio por ter instituído aquela saudação.
Jair Bolsonaro é diferente. A qualquer grota que chegue, inclusive o cercadinho no Alvorada, grupos ainda ululam “Mito! Mito!”. E ele acredita nisso. Tem de acreditar. Com sua máscara de honesto caindo diante de sérias acusações que o revelam como corrupto, precisa aproveitar cada minuto na Presidência. Ninguém o chamará de “Mito! Mito!” na cadeia.
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