O Globo
As Forças Armadas e o ministro da Defesa
reagiram de forma exagerada e fora do tom a uma declaração do presidente da
CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM). E assim deram mais um passo na sua
politização. Na sessão que terminou com a prisão de Roberto Dias houve tanta
referência a militares que o senador disse que “os bons das Forças Armadas”
deviam estar com vergonha dos “membros do lado podre”. Mais tarde, ele fez
elogios às Forças Armadas, atenuando o que dissera. Os três comandantes e o
general Braga Netto fizeram uma ameaça implícita. Disseram que “não aceitarão
qualquer ataque leviano”. Omar, diante de um plenário em silêncio, deu sua
resposta. “Podem fazer 50 notas contra mim, só não me intimidem."
Foi um dia de muitas revelações, apesar das
mentiras, lacunas, inverossimilhanças de Roberto Dias. Seu depoimento deixou
elementos para se concluir que há uma divisão no Ministério, de grupos com
esquemas diferentes, querendo tirar vantagens na compra de imunizantes. O
ex-secretário-executivo coronel Élcio Franco — aquele que usa o broche de uma
caveira esfaqueada — estava no lado oposto ao de Ricardo Dias. Enquanto
brasileiros morriam, vacina passara a ser uma moeda de troca numa disputa de
poder.
O que o ex-diretor do Departamento de
Logística falava não ficava de pé porque ele mesmo tratava de derrubar o que
acabara de dizer. Segundo Dias, ele não negociou a compra de vacinas, mas
aceitou marcar uma reunião no Ministério no dia seguinte ao do encontro no
restaurante com o cabo Luiz Paulo Dominguetti. E nessa reunião tratou de
vacinas. Ou seja, negociou.
Roberto Dias afirmou inúmeras vezes que toda a negociação de vacinas estava centralizada no secretário-executivo Élcio Franco. Se era assim, por que ele aceitou marcar uma reunião com Dominguetti e o coronel Marcelo Blanco para tratar da oferta de 400 milhões de doses? Se o assunto era vacina da Astrazeneca, porque ele nunca pensou — nem Franco — em chamar para essa conversa a Fiocruz, que tinha acordo com a própria Astrazeneca?
Na versão do ex-sargento Roberto Dias, o
encontro com Dominguetti foi casual. Ele marcou um chopp com seu amigo às cinco
da tarde. E apareceram por lá o coronel Marcelo Blanco, com quem havia
trabalhado no Ministério, e o cabo Dominguetti. Numa hora daquelas, numa
quinta-feira, no meio de uma pandemia que só naquele dia matou mais de 1.500
brasileiros, o diretor de logística do Ministério da Saúde de um país sem
vacinas vai beber com um amigo. Encontra casualmente um ex-assessor que abriu
uma empresa de medicamentos e um cabo da PM de Minas Gerais que diz representar
uma empresa que teria 400 milhões de doses. O Ministério que foi tão fechado
para a Pfizer, tão hostil ao Butantan, tão lerdo, fica de repente ágil e na
tarde do dia seguinte estava recebendo em sua sala o cabo que agora ele define
como picareta, aventureiro e mentiroso.
O senador Eduardo Braga (MDB-AM) deu chance
para Dias se explicar. Lembrou que ele havia sofrido várias retaliações. Fora
indicado para a Anvisa, mas a indicação fora retirada. Fora exonerado pelo
general Eduardo Pazuello, mas sua demissão fora revista na Casa Civil. E após
ser acusado, por Dominguetti, de cobrar a propina de um dólar por dose, ele foi
exonerado. Além disso, assessores seus foram demitidos contra a sua vontade, e nomeados
dois militares, um deles o tenente-coronel Alex Lial Marinho, já citado na CPI.
Diante de todos esses sinais da luta interna no Ministério, Dias dizia não se
lembrar dos eventos ou não ter ideia dos motivos. “Desconheço”, repetia.
Omar Aziz tentou dissuadi-lo. Pediu que ele
falasse a verdade. Lembrou que ninguém ali era tolo. Na confusão que se formou
após o presidente da CPI dar a ordem de prisão em flagrante por falso
testemunho, a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) foi ao ponto:
— O senhor tentou infantilizar esta
comissão. Todo mundo sabe que o seu encontro não foi casual. Pelo amor de Deus,
o senhor está sendo preso, contribua com esta comissão. O senhor não está vendo
que os integrantes do governo lhe jogaram para as cobras?
A CPI ontem deixou claro que o Ministério
da Saúde do país que já perdeu 528 mil pessoas para a Covid dedica-se à guerra
interna entre esquemas de poder. Militares da ativa ou da reserva, políticos do
centrão se misturam nesse cenário de horror que é o governo Jair Bolsonaro.
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