EDITORIAIS
Meia-volta retórica
Folha de S. Paulo
Após fracasso em superar a fraqueza com
gritaria, Bolsonaro encena recuo cínico
Depois de uma jornada de exaltações no 7 de
Setembro, em que proferiu ameaças golpistas ao Supremo Tribunal Federal,
dirigiu ofensas ao ministro Alexandre de Moraes, pregou desobediência à Justiça
e anunciou que só deixará morto a Presidência, Jair Bolsonaro divulgou nota na
qual afirma que não teve “nenhuma intenção de agredir quaisquer dos Poderes”.
Os excessos, tentou explicar, deveram-se ao
“calor do momento”.
Em tom cínico, a meia-volta retórica teve o
intuito de salvar do incêndio as pontes que ainda permitem algum tráfego entre
a Presidência, os Poderes constituídos e a economia —depois que a tentativa de
mostrar força nas ruas só deu em gritaria irracional.
Se Bolsonaro já se encontrava em avançado
estágio de isolamento político, após o festival de afrontas que promoveu em
Brasília e São Paulo o quadro se agravou.
Com mais ou menos veemência, mas sempre em tom de reprimenda, sucederam-se pronunciamentos contrários à atuação do presidente por parte de autoridades da República. Também vieram à luz palavras de apreensão por parte do setor empresarial.
Algum arreglo, portanto, precisava ser
providenciado. Com esse propósito, Bolsonaro convocou o ex-presidente Michel
Temer (MDB), que prestou assessoria no esforço de salvar o possível das
aparências: auxiliou na redação da nota e agenciou uma conversa telefônica com
Moraes, principal desafeto do mandatário no STF.
Também a Federação das Indústrias do Estado
de São Paulo, entidade presidida pelo emedebista Paulo Skaf desde 2004,
contribuiu para a coreografia dos panos quentes com uma carta a favor do
entendimento entre os Poderes.
Desde o início de sua gestão, Bolsonaro
comporta-se de modo errático. Já em 10 de janeiro de 2019, esta Folha noticiava
que nos primeiros nove dias no Planalto, o presidente já havia voltado atrás em
pelo menos nove anúncios.
Parte desses recuos deveu-se à
incompetência e descoordenação do governo. Outra parte, todavia, veio em
resposta a reações de apoiadores organizados na internet.
A presente mudança de tom contradiz esse
padrão. O mandatário, que já fora compelido por sobrevivência política a
negociar com o centrão, vê-se agora constrangido a decepcionar sua turba
extremista.
Tudo somado, o alarido antidemocrático, os
ataques às instituições, as conclamações exorbitantes e a encenação do recuo
parecem indicar a atrofia de um presidente.
Incapaz de enfrentar os reais problemas do
país, Bolsonaro não cessa de promover tumultos, movido pelo temor de que ele
próprio e membros de sua família tenham de prestar em breve contas à Justiça.
Aborto, México e Texas
Folha de S. Paulo
Avanço no país latino contrasta com
legislação persecutória no estado americano
O debate em torno do direito ao aborto
conheceu nos últimos dias movimentos opostos dentro do continente americano.
No México, a Suprema Corte decidiu de forma
unânime descriminalizar
a interrupção da gravidez. Os magistrados reconheceram que a prática
pertence à esfera da saúde pública e dos direitos da gestante.
É como esta Folha entende que a
questão deva ser tratada, isto é, do ponto de vista da preservação da vida, da
segurança e da escolha das mulheres, e não sob a ótica do direito penal. No
Brasil, infelizmente, vigora ainda a visão punitivista.
O veredicto mexicano, referente à
constitucionalidade de leis do estado de Coahuila que estipulavam até três anos
de prisão para mulheres que abortassem, deve pressionar a aprovação de normas
que legalizem a prática —hoje permitida em três estados e na capital.
A decisão estabelece um precedente para
todos os tribunais de instâncias inferiores, podendo servir também, segundo
especialistas, para livrar da cadeia mulheres presas em razão de abortos
ilegais.
A ilustrar as dificuldades que essa pauta
enfrenta, o avanço ocorrido no México se dá de maneira quase simultânea
ao retrocesso
registrado no vizinho estado americano do Texas. Ali, no dia 1º de
setembro, entrou em vigor a lei sobre aborto mais restritiva dos Estados
Unidos, onde esse direito existe há quase cinco décadas.
A nova regra proíbe a prática após seis
semanas de gestação, período em que muitas mulheres ainda não sabem que estão
grávidas, e não abre exceções nem para casos de estupro ou incesto.
Não bastasse, a norma incentiva os cidadãos
a se tornarem delatores. Quem denunciar mulheres, médicos ou quaisquer pessoas
envolvidas em abortos ilegais serão recompensados financeiramente.
Nada disso seria possível se a Suprema
Corte tivesse bloqueado a legislação, como já havia feito em casos semelhantes.
Ao rechaçar sua suspensão, o tribunal, hoje de maioria conservadora, abre um
inquietante precedente legal. Diante disso, o governo Joe Biden anunciou a
abertura de um processo contra o Texas para tentar reverter a regra.
Tanto evidências internacionais como a realidade do continente mostram que a lei texana dificilmente impedirá abortos. Antes empurrará uma legião de mulheres, em especial as mais vulneráveis, para a clandestinidade, colocando em risco sua saúde e sua vida.
O recuo de Bolsonaro é insuficiente
O Estado de S. Paulo
O fim da produção diária de conflitos é bem-vindo, mas Jair Bolsonaro não foi eleito apenas para ser pacífico, e sim para governar
Guiado pelas mãos do ex-presidente Michel
Temer, o presidente Jair Bolsonaro fez, na quinta-feira passada, seu mais
significativo recuo.
A Declaração à Nação, que o presidente
divulgou apenas dois dias depois de ter açulado seus seguidores contra o
Supremo Tribunal Federal (STF), diz exatamente o oposto do que ele vinha
declarando até então. “Nunca tive nenhuma intenção de agredir quaisquer dos
Poderes”, diz a declaração daquele que, no 7 de Setembro, havia chamado de
“canalha” o ministro Alexandre de Moraes, do STF. “Sempre estive disposto a
manter diálogo permanente com os demais Poderes pela manutenção da harmonia e
independência entre eles”, diz a declaração daquele que promoveu uma
manifestação multitudinária contra o Supremo e anunciou, aos gritos, que não
cumpriria mais nenhuma ordem judicial assinada por Moraes.
Como se sabe, a palavra de Bolsonaro não
vale nada. No início de agosto, diante de novos ataques de Bolsonaro contra
ministros do Supremo, o presidente da Corte, Luiz Fux, cancelou uma reunião
prevista entre os chefes dos Três Poderes. “Diálogo eficiente pressupõe
compromisso permanente com as próprias palavras, o que, infelizmente, não temos
visto no cenário atual”, disse Luiz Fux na ocasião.
Não existe, portanto, expectativa de que
Jair Bolsonaro, cuja carreira é marcada pela truculência, passe de repente a
agir de forma civilizada. Na prática, sua Declaração à Nação se
presta a tentar fazer os brasileiros esquecerem que ele passou seu mandato se
dedicando a criar uma crise atrás da outra, inflamando o País e cometendo
crimes de responsabilidade em profusão, tudo isso para esconder sua profunda
incompetência.
Na mais recente turbulência inventada por
Bolsonaro, o presidente, exercendo sua vocação de líder sindical, estimulou os
caminhoneiros a bagunçar o País e, assim, intimidar o Supremo e gerar pretexto
para soluções de força. “Essa greve vai cair diretamente no seu colo”, alertou
Michel Temer, com conhecimento de causa: foi em seu governo que uma grande
greve de caminhoneiros – apoiada pelo então deputado Bolsonaro – prejudicou
imensamente os brasileiros e custou muito caro à economia. Ou seja, Bolsonaro
estimulou forças destrutivas que ameaçavam sair de seu controle e que
certamente lhe causariam prejuízo eleitoral, conforme o sábio conselho de
Temer.
Bolsonaro pode não cumprir nada do que
disse na declaração de 9 de setembro, mas o fato é que reconheceu que suas
ações extrapolam os limites institucionais – o que poderia lhe custar o cargo.
Antes, pediu o impeachment de Alexandre de Moraes e exigiu que o presidente do
Supremo “enquadrasse” o desafeto; agora, afirmando o que deveria ser óbvio,
declarou que suas “naturais divergências” com Alexandre de Moraes “devem ser
resolvidas por medidas judiciais”, e não no grito.
Dado o imenso contraste com o discurso
golpista de Bolsonaro até então, a Declaração à Nação – que, como
lembrou Michel Temer, é “um compromisso formal, escrito e assinado com a Nação,
um compromisso de moderação” – gerou grande perplexidade nas bases
bolsonaristas. O gesto incluiu até uma civilizada conversa telefônica de
Bolsonaro com Alexandre de Moraes.
Num Estado Democrático de Direito, o
exercício do poder exige necessariamente diálogo, respeito ao outro,
reconhecimento dos erros. Por sua vez, a aposta no conflito gera impasse e
paralisia. Resultado do exercício da política e expressão da necessidade de
harmonia institucional, a Declaração à Nação é, assim, a perfeita
antítese do bolsonarismo. Não se deve estranhar a frustração dos bolsonaristas
com o texto.
Mas o gesto de Bolsonaro, em si, é
insuficiente. Não basta parar as agressões contra juízes e as difamações contra
as eleições. Há um País a ser governado. Existem problemas sérios a serem
enfrentados. Talvez aqui esteja o aspecto central de desconfiança em relação a
Jair Bolsonaro. O fim da produção diária de conflitos, se for para valer, é
certamente bem-vindo, mas Bolsonaro não foi eleito apenas para ser pacífico, e
sim para governar – o que não fez até agora.
A disciplina da PM
O Estado de S. Paulo
PMs observaram a cadeia de comando, mas a democracia demanda esforço de manutenção
As manifestações antidemocráticas no 7 de
Setembro, em apoio à agenda golpista do presidente Jair Bolsonaro, mostraram ao
País que as Polícias Militares (PMs) não são forças incontroláveis.
Não sem razão, temia-se que um bom
contingente de policiais militares da ativa participasse dos atos em defesa do
voto impresso, da cassação de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do
descumprimento de decisões judiciais, inclusive portando suas armas de fogo. O
vírus do bolsonarismo há muito foi inoculado nas forças de segurança pública,
seja porque Bolsonaro sempre encampou – em seu favor e de sua família, diga-se
– os anseios dos praças, seja porque ele mesmo foi um mau militar, um soldado
absolutamente avesso aos dois pilares do estamento militar: a hierarquia e a
disciplina. Portanto, quando insufla a balbúrdia e a insubordinação dos
policiais militares, Bolsonaro fala com conhecimento de causa.
Mas, em que pese a violência do conteúdo
das palavras de ordem, não houve nenhum incidente de maior gravidade em todo o
País. As PMs cumpriram a lei, como era sua obrigação. Nas cerca de 200 cidades
onde houve manifestações pró-governo, principalmente em Brasília, no Rio de
Janeiro e em São Paulo, os apoiadores de Bolsonaro puderam se insurgir contra a
Constituição com absoluta tranquilidade, sem se machucar ou machucar outras
pessoas e sem provocar maiores danos ao patrimônio, público ou privado.
A participação de policiais militares da
ativa nas manifestações de rua, especialmente em se tratando de manifestações
de clara natureza golpista, seria um intolerável descumprimento da ordem
jurídica. A missão precípua das PMs é diametralmente oposta. A Constituição diz
categoricamente que “às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a
preservação da ordem pública”. Tal dispositivo encontra-se no Título V da
Constituição, que trata da defesa do Estado e das instituições democráticas, e
não da defesa de um governo ou, menos ainda, de um presidente.
O ordenamento jurídico brasileiro veda a
participação de militares da ativa em manifestações de natureza
político-partidárias por duas razões elementares. Primeiro, porque são forças a
serviço do Estado, como dito, e não de governos. Segundo, porque na democracia os
debates acerca das questões de interesse público são vencidos pela força dos
argumentos dos atores políticos, vale dizer, pela força da palavra, e não das
armas.
Poderia ter sido outro o resultado não
fosse a ação incisiva e oportuna dos governadores de Estado, a quem os comandos
das PMs estão subordinados, e do Ministério Público. Em São Paulo, o governador
João Doria (PSDB) afastou imediatamente do comando um coronel da ativa que
havia convocado seus “amigos” para as manifestações pró-governo na Avenida Paulista.
Por sua vez, três dias antes das manifestações, o procurador-geral de Justiça
do Estado, Mário Sarrubbo, expediu recomendação aos comandos da PM e do Corpo
de Bombeiros de São Paulo para que adotassem medidas a fim de “prevenir, buscar
e, se for o caso, fazer cessar, inclusive por meio da força, quaisquer
manifestações político-partidárias promovidas por ou com participação de
agentes da ativa”. Doria e Sarrubbo acompanharam as manifestações na Avenida
Paulista e no Vale do Anhangabaú desde o Centro de Operações da Polícia Militar
(Copom), na região central da capital paulista.
Ao contrário do que supõe, Bolsonaro não
tem controle sobre as Polícias Militares, como se pudesse convertê-las em
guarda pretoriana a seu bel-prazer. O que se viu nas ruas no Dia da
Independência foi uma estrita observância às leis e às cadeias de comando por
parte dos policiais militares. Os que estavam em serviço não participaram dos
atos, nem tampouco os que estavam de folga. Noticiou-se que apenas PMs
aposentados aderiram às manifestações, o que não é ilegal.
Contudo, não se deve com isso baixar a
guarda e subestimar a ação insidiosa do bolsonarismo no seio das forças de
segurança pública. A democracia é um regime que exige enorme esforço de
manutenção e, como se diz, vigilância constante.
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