O Estado de S. Paulo
O País que eu e os brasileiros de boa-fé
conhecemos sempre entendera o imperativo da paz política
Meus caros leitores e leitoras, a
realidade, infelizmente, é esta. Temos na chefia do Estado um indivíduo
excluído das Forças Armadas por indisciplina, que se compraz em posar para
fotografias fazendo gracinhas com armas de fogo de grosso calibre, e que, a fim
de se reeleger em 2022 ou implantar um regime de exceção, não hesitará em
convulsionar o País.
Isso não é o Brasil que cedo conheci e
aprendi a amar e esse não é um modelo aceitável de presidente da República. O
Brasil que conheci em tempos mais felizes não é este sob o qual estamos
atualmente encangalhados. O Brasil de Jair Bolsonaro consegue ser pior que o
retratado em grande parte de nossa historiografia, que, por sua vez, serve de
farto alimento para novelas e comédias, na qual a formação do Estado brasileiro
é representada como pura farsa. A própria Constituição de 1824 é geralmente
pintada nessas cores, como se passar da tirania colonial para uma tirania
caudilhesca pudesse ter sido uma solução superior à passagem ao Estado
constitucional, rapidamente implantado, não obstante todas as precariedades da
época.
O Brasil que conheci optou, desde os primórdios, por uma Constituição liberal, com os olhos fitos num futuro democrático-representativo, cujos dirigentes compreendessem a importância da separação e da harmonia entre os Poderes, valorizassem a liturgia a que os Estados constitucionais têm recorrido ao longo dos séculos como modelo de comportamento para as autoridades públicas e tivessem na alma a devoção a uma verdadeira polis, vale dizer, à sagrada missão de manter a vida em comum dentro de padrões ordeiros e civilizados.
Com rara felicidade, Euclides da Cunha
escreveu que o Brasil é um país “condenado à civilização”. Exatamente isso.
Imaginá-lo em progressivo afastamento em relação a essa diretriz equivale a
optar por um futuro macabro: um país incapaz de se desenvolver economicamente,
encoberto por uma imensa mancha de desigualdade e pobreza, com instituições de
fachada e corroído até a medula pela corrupção e pela criminalidade. Um país
sob o qual pairasse uma espessa camada de ignorância e irresponsabilidade.
Permitam-me retomar, aqui, o tema do crescimento econômico e da redução do
crudelíssimo desemprego a que uma massa de brasileiros vem sendo submetida
desde o governo da sra. Dilma Rousseff. O atual ocupante do Planalto sabe, ou
devia saber, que o clima de radicalização e desordem que insiste em perpetuar é
incompatível com a promoção do crescimento e a redução do desemprego. Não temos
outro caminho a não ser estimular e atrair investimentos, mas o sr. Bolsonaro
tudo faz para afugentá-los.
É certo que o Brasil sofreu rupturas
autoritárias, com repressão violenta e o sempre escabroso recurso à tortura,
mas sempre abominou a ideia de uma ditadura permanente. É perfeitamente cabível
afirmar que tais períodos foram exceções em dois séculos de uma difícil,
tortuosa, mas no todo acertada evolução no sentido de uma nação civilizada. Com
exceções importantes, que não vêm ao caso neste texto, as elites relevantes do
Brasil sempre entenderam que nosso país é inviável sob tiranias permanentes,
tanto assim que, findos os períodos de exceção, o único horizonte considerado a
sério foi o retorno ao regime civil e à democracia representativa. Excetuada a
ditadura varguista (1937-1945), a suspensão total das regras constitucionais
nunca foi cogitada. Mesmo o regime militar de 1964-1945, por mais que tenha
manipulado e falseado tais regras, manteve parte delas, verdade que desde logo
se evidencia pelo fato de que terminou ao ser derrotado no Colégio Eleitoral, arena
que ele mesmo estabeleceu a fim de monopolizar a escolha do chefe de Estado.
O Brasil que conheci e todos os brasileiros
de boa-fé conheceram sempre entendera o imperativo da paz política,
magnificamente definida por Tancredo Neves como uma “esquiva conquista da razão
política”. Ao contrário do que continuamente se repete nas novelas e comédias,
tivemos muitas autoridades eletivas imunes à divinização da violência.
Autoridades que governaram, mesmo sem o conhecer, segundo o ensinamento
confucianista da “magnanimidade”, e entre estes penso que Juscelino Kubitschek
é uma referência obrigatória.
Claro, o Brasil que conheci e conheço não é
um oceano de lucidez, muito menos um paraíso. Na área da educação, não cabe
dúvida de que falhamos grotescamente, por ações e omissões. Mas é justo
reconhecer que somos hoje uma sociedade consciente da necessidade de abolir
todos os resíduos da antiga estratificação aristocrática e escravista, e que
tem plena consciência de que tal objetivo só poderá ser alcançado quando tivermos
um sistema educacional digno do nome. Hoje, salvo os muito obtusos, os cidadãos
entendem que uma ação enérgica para superar o vigente estado de coisas precisa
ser alçada à condição de absoluta prioridade. Mas também neste particular,
infelizmente, o governo Bolsonaro provavelmente passará pela cena sem dizer
palavra.
*Membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira
de Ciências. Seu último livro é ‘Antes que eu me esqueça: crônicas, contos e
outros escritos’
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