sexta-feira, 14 de novembro de 2025

A eterna ofensiva contra o aborto legal, por Priscilla Bacalhau

Folha de S. Paulo

Nem sempre é razoável exigir consentimento da família para o procedimento

Meninas vítimas de estupro são submetidas a um calvário institucional

O debate sobre aborto legal volta e meia reaparece disfarçado de polêmica moral, apesar de ser permitido por lei em casos específicos desde 1940. No último dia 5, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de decreto legislativo para derrubar a resolução do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) que estabelecia diretrizes para o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. O Senado, por sua vez, deve deixar o tema suspenso por ora. Enquanto isso, mais uma vez, a ânsia por votos conservadores se sobrepõe à garantia de direitos.

A resolução do Conanda não muda a lei, apenas regulamenta como garantir um atendimento mais ágil, humano e coerente com a legislação vigente. O objetivo é reduzir a revitimização, assegurar informações adequadas, oferecer apoio psicológico, social e jurídico, e garantir que casos de violência sexual recebam uma resposta integrada. Trata-se de orientar as redes de saúde, assistência social, educação e proteção de direitos, sobre quem faz o quê quando uma criança ou adolescente chega em situação de violência sexual e gravidez.

A legislação brasileira já prevê, há décadas, que em casos de risco à vida da gestante e gravidez resultante de estupro o aborto é permitido. A resolução apenas detalha como o atendimento deve ocorrer nesses casos. O que ela propõe é garantir salvaguardas concretas: consentimento informado, proteção de dados, respeito à vontade da vítima e acompanhamento por equipes multiprofissionais.

Outro ponto é a descentralização e padronização dos serviços, para ampliar o acesso em regiões onde a assistência é quase inexistente. Meninas e adolescentes enfrentam barreiras como falta de informação, resistência de profissionais e até humilhações. Em um cenário em que mais de 85% dos casos de estupro é cometido por alguém da própria família ou conhecido, nem sempre é razoável exigir o consentimento da família para autorizar o procedimento.

Os críticos da resolução, entre parlamentares de oposição e setores autodenominados "pró-vida", alegam que ela facilitaria ou aceleraria o acesso ao aborto em menores. Acontece que, hoje, meninas vítimas de estupro são submetidas a um calvário institucional, em que a resposta das autoridades é muitas vezes para "aguentar só mais um pouquinho". Enquanto esperam autorizações e pareceres, a gravidez avança e, com ela, os riscos físicos, psicológicos e sociais.

Por isso, sim, é necessário acelerar os procedimentos. Não para flexibilizar a lei, mas para garantir que ela seja cumprida. Diretrizes para atendimento podem fazer a diferença ao reduzir o tempo de espera e fortalecer a atuação das equipes interdisciplinares.

Os números revelam o tamanho da distorção: é uma parcela mínima das meninas vítimas de estupro que efetivamente têm acesso a aborto legal. Essas meninas têm risco elevado de complicações graves devido à idade. As estatísticas expõem ainda desigualdades regionais, raciais e sociais que seguem ignoradas politicamente. Negar o acesso ao aborto legal a crianças e adolescentes vítimas de estupro perpetua a violência, amplia o sofrimento e aprofunda desigualdades. É escolher o cálculo político em vez da proteção das crianças.

 

 

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