Folha de S. Paulo
Nem sempre é razoável exigir consentimento da
família para o procedimento
Meninas vítimas de estupro são submetidas a
um calvário institucional
O debate sobre aborto legal volta e meia reaparece disfarçado de polêmica moral, apesar de ser permitido por lei em casos específicos desde 1940. No último dia 5, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de decreto legislativo para derrubar a resolução do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) que estabelecia diretrizes para o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. O Senado, por sua vez, deve deixar o tema suspenso por ora. Enquanto isso, mais uma vez, a ânsia por votos conservadores se sobrepõe à garantia de direitos.
A resolução do Conanda não muda a lei, apenas
regulamenta como garantir um atendimento mais ágil, humano e coerente com a
legislação vigente. O objetivo é reduzir a revitimização, assegurar informações
adequadas, oferecer apoio psicológico, social e jurídico, e garantir que casos
de violência sexual recebam uma resposta integrada. Trata-se de orientar as
redes de saúde, assistência social, educação e proteção de direitos, sobre quem
faz o quê quando uma criança ou adolescente chega em situação de violência
sexual e gravidez.
A legislação brasileira já prevê, há décadas,
que em casos de risco à vida da gestante e gravidez resultante de estupro o
aborto é permitido. A resolução apenas detalha como o atendimento deve ocorrer
nesses casos. O que ela propõe é garantir salvaguardas concretas: consentimento
informado, proteção de dados, respeito à vontade da vítima e acompanhamento por
equipes multiprofissionais.
Outro ponto é a descentralização e
padronização dos serviços, para ampliar o acesso em regiões onde a assistência
é quase inexistente. Meninas e adolescentes enfrentam barreiras como falta de
informação, resistência de profissionais e até humilhações. Em um cenário em
que mais de 85% dos casos de estupro é cometido por alguém da própria família
ou conhecido, nem sempre é razoável exigir o consentimento da família para
autorizar o procedimento.
Os críticos da resolução, entre parlamentares
de oposição e setores autodenominados "pró-vida", alegam que ela
facilitaria ou aceleraria o acesso ao aborto em menores. Acontece que, hoje,
meninas vítimas de estupro são submetidas a um calvário institucional, em que a
resposta das autoridades é muitas vezes para "aguentar só mais um
pouquinho". Enquanto esperam autorizações e pareceres, a gravidez avança
e, com ela, os riscos físicos, psicológicos e sociais.
Por isso, sim, é necessário acelerar os
procedimentos. Não para flexibilizar a lei, mas para garantir que ela seja
cumprida. Diretrizes para atendimento podem fazer a diferença ao reduzir o
tempo de espera e fortalecer a atuação das equipes interdisciplinares.
Os números revelam o tamanho da distorção: é
uma parcela mínima das meninas vítimas de estupro que efetivamente têm acesso a
aborto legal. Essas meninas têm risco elevado de complicações graves devido à
idade. As estatísticas expõem ainda desigualdades regionais, raciais e sociais
que seguem ignoradas politicamente. Negar o acesso ao aborto legal a crianças e
adolescentes vítimas de estupro perpetua a violência, amplia o sofrimento e
aprofunda desigualdades. É escolher o cálculo político em vez da proteção das
crianças.

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