sábado, 22 de novembro de 2025

Reflexões fáceis, problemas encardidos, por Bolívar Lamounier

O Estado de S. Paulo

Como sobrevive um país desprovido de verdadeiros partidos políticos?

Sabe o leitor que, na vida pública, existem indagações fáceis de responder, indagações difíceis e indagações rigorosamente irrespondíveis.

Hoje, eu gostaria de falar sobre uma que tem aparecido nas três categorias. Refiro-me à questão dos partidos políticos. Suponhamos que você vá a Brasília e pergunta a um indivíduo qualquer, escolhido a esmo: o que você entende por partido político? O mais provável é que ele nada responda ou então diga algo assim: partido é um grupo de pessoas que comungam certos valores e se reúnem para tentar realizálos, disputando eleições. Eu retrucaria: um grupo de pessoas que comungam certos valores? De onde você tirou isso? Aqui em Brasília é que não foi, não é?

Aí me dirijo a um segundo indivíduo, ali mesmo na Esplanada dos Ministérios. O que você entende por partido político? E ele: “Ora, só pode ser um grupo de sujeitos que fica à espreita, esperando a chance de destruir o País. Veja o caso da Argentina. Políticos, militares, trotskistas, anarquistas, achavam que o país era bom demais para o que os argentinos mereciam. Em vez de vários partidos, vamos trazer o Perón de volta da Espanha, ele vem com Isabelita, sua segunda mulher e a coloca como vice-presidente, por precaução, porque já está um pouco velho. Aí, o que aconteceu? Ora, na hora H, Perón morreu, ela foi posta em prisão domiciliar, todos quebraram o pau e pronto: não têm mais país, mas também não têm essa coisa abominável a que chamam partidos”.

A essa altura, resolvi dirigir-me a um senhor bem aparecido, com cara de cavalheiro, obviamente uma pessoa letrada. Fiz-lhe a pergunta e ele, com um sorriso de felicidade por ter sido inquirido, respondeu-me: “Ora, isso é comigo mesmo”.

E prosseguiu: “Partidos são a engrenagem fundamental da democracia representativa. Sem partidos, não há democracia. E a recíproca é verdadeira: sem democracia não há partidos, porque ditaduras não os toleram”.

Formidável, respondi a ele, mas o que, exatamente, é um partido?

Respondeu-me o cavalheiro que iríamos muito longe se fôssemos discorrer sobre outros países. Fiquemos no Brasil. Desde logo, o partido tem de ter caráter nacional, ou seja, não admitimos partidos regionais. Uma vez constituídos, têm direito a financiamento (recursos do Fundo Partidário) e a acesso gratuito ao rádio e à TV para divulgar seus programas, pois não é concebível que nosso imenso eleitorado compareça às urnas desprovido de informações idôneas sobre as alternativas entre as quais terá o direito e o dever de fazer sua escolha. E, naturalmente, a Constituição não estabelece restrições quantitativas quanto ao número de partidos.

Ótimo, ótimo, lhe respondi, mas continuo sem uma ideia exata sobre o que é, de fato, um partido. “Ora – respondeu-me – é muito simples. Primeiro, o grupo interessado em formar um partido precisa registrar sua intenção no Cartório de Pessoas Jurídicas do Distrito Federal. Observe que aí ele já começa a existir. Depois o referido grupo deve comparecer ao Tribunal Superior Eleitoral portando uma senhora maçaroca. Um catatau do qual haverá de constar os estatutos e o programa do partido, bem como algumas centenas de páginas com assinaturas de eleitores de vários Estados, sendo essa a prova do indispensável “caráter nacional” da recém-criada agremiação”.

E daí em diante, o que acontece? “Ora”, respondeu-me o interlocutor com a mesma distinção que demonstrara até esse ponto. “Daí em diante, desde que conquiste o desejado número de assentos parlamentares, o partido contribui para o bem do País na exata proporção da qualidade de seus membros. Tivemos em nossa história partidos que fizeram coisas admiráveis. É verdade que esses, nos dias de hoje, rarearam. Ocupam-se principalmente em inserir na legislação os chamados privilégios corporativistas, quero dizer, normas legais para a proteção e a progressão profissional de pequenos grupos, que os recompensam com apoio eleitoral; isso, naturalmente, nos níveis nacional, estadual e municipal. Dado que a vida política edulcora o coração das pessoas, muitos também se esforçam para arranjar empregos para amigos e parentes. E, sobretudo, trabalham com afinco para influenciar o Orçamento federal anual, pois, afinal de contas, nada há de mais execrável que a mania da chamada “área econômica” de querer equilibrar a arrecadação e o gasto.

A organização jurídica, como veem, é impecável. Nada escapou à atenção da Constituição de 1988 e à subsequente legislação ordinária. O único senão é que continuamos aprisionados na chamada “armadilha do baixo crescimento”. Incapaz de crescer pelo menos dois e meio por cento ao ano, levaremos uma geração inteira para dobrar nossa já pífia renda anual per capita. Com Lula na Presidência, pleiteando a reeleição e uma entidade chamada Centrão funcionando como a estufa que cedo ou tarde nos trará uma plêiade de estadistas, o distinto cavalheiro que tão bem me atendeu em Brasília terá de me explicar melhor como sobrevive um país desprovido de verdadeiros partidos políticos. •

 

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