sábado, 22 de novembro de 2025

Tchau, querides! Por Eduardo Affonso

O Globo

Lei que cria a Política Nacional de Linguagem Simples não é aceno aos conservadores, mas ao bom senso

Durou pouco a fantasia autoritária do pequeno grupo que quis impor uma mudança estrutural no idioma. “Pouco” é modo de dizer. Durou o suficiente para causar treta, virar piada e demarcar a diferença entre os defensores da língua como organismo vivo, que evolui natural e incessantemente, e os que se acham no direito de moldar, segundo seu viés ideológico, o que é patrimônio de mais de 200 milhões de falantes.

A lei sancionada pelo presidente Lula criando a Política Nacional de Linguagem Simples não é um aceno aos conservadores, mas ao bom senso. Tem vários defeitos e uma grande virtude: propõe que órgãos e entidades públicas usem língua de gente — sem jargão, sem palavrório e respeitando a norma-padrão.

Os partidários do “todes” certamente teriam levantado a voz em defesa do idioma se os reacionários do governo anterior ousassem falar “o vítimo”, “o crianço”, “o pessoo” para que os machos não se sentissem emasculados com o artigo no feminino. Confundir gênero gramatical e gênero biológico seria tratado como negacionismo linguístico e desprezo pela cultura, além de bobagem sem tamanho.

A lei põe fim a desatinos como os propostos no texto “Bom dia a Tod@s, TodEs, TodXs: o uso de pronomes neutros (não binários) e a desconstrução da linguagem sexista, machista, misógina, transfóbica”, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd). Tenho dúvida se os acadêmicos se referiam à língua sexista de Rubem Braga e Pedro Nava, à língua misógina de Adélia Prado e Hilda Hilst, à língua machista de Marina Colasanti e Clarice Lispector, à língua transfóbica de Guimarães Rosa e Machado de Assis.

Outro bem-vindo sinal de lucidez está na vazante da problematização racial do idioma. Nesta semana em que se comemorou o Dia da Consciência Negra, já não houve a tradicional torrente de cartilhas com delírios pseudoetimológicos.

Ao contrário dos anos anteriores, nenhuma universidade federal ou Ministério Público estadual torrou nosso dinheiro e nossa paciência tentando convencer os incautos de que houvesse racismo em “mais vale um na mão do que dois voando”. Não se condenou o uso de expressões como “quadro-negro”, “noite em claro”, “cheque em branco” ou “faixa preta”. Nem se desenvolveu a tese de que é sintoma de racismo estrutural o time da Ponte Preta permanecer na série C enquanto o Vasco da Gama (cujo nome homenageia um colonizador branco) está na série A (em 13º lugar, mas está lá). Faltou pouco para isso.

Alguns dos manuais de letramento racial lançados em 2025 (como os do Instituto Federal do Tocantins e da Secretaria de Cidadania de Mato Grosso do Sul) ainda insistem na lorota do “criado-mudo”, mas a maioria já se desapegou das fake news.

Passada a pandemia identitária, linguistas e cientistas sociais talvez se voltem para este período com a mesma incredulidade com que procuramos entender a febre dos discos voadores durante a Guerra Fria, a histeria com o bug do milênio, o brinco de pena, as ombreiras, as meias de Lurex.

É um alívio saber que não corremos mais o risco de vir a ter de cantar “des filhes deste solo és pessoa que pare gentil”. E diminui a cada ano a ameaça de ouvir que é preciso decolonizar o hino por causa de “e diga o verde-louro desta flâmula” — e esse “louro” aí ser parte de algum pacto da branquitude.

 

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