Festlatino presta homenagens e aponta novas tendências da produção
Luiz Carlos Merten
Após a celebração do cinema ibero-americano pelo CineSul, no Rio, em junho, São Paulo hospeda agora o Festlatino, o maior evento de cinema latino-americano do Brasil. O 8.º Festival de Cinema Latino-americano de São Paulo, o Festlatino, abre-se hoje para convidados e amanhã para o público. Durante uma semana o cinéfilo poderá se atualizar não apenas com as novas tendências do cinema da região como resgatar filmes e autores que estão sendo homenageados. No Rio, o grande destaque foi para a revisão da obra do argentino Eliseo Subiela, diretor de um filme cult, Hombre Mirando al Sudeste, que veio mostrar seu novo trabalho, interpretado pelo lendário diretor Fernando Birri.
São Paulo homenageia Guido Araújo, criador da Jornada Internacional de Cinema da Bahia, exibindo três filmes que ele dirigiu. E dá carta branca aos críticos José Carlos Avellar, do Brasil, e Manuel Martinez Carril, do Uruguai, que selecionaram 11 obras definidoras da identidade latina no cinema. Dois são filmes brasileiros, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, com a excepcional trilha de Sérgio Ricardo ('Te entrega, Corisco/Eu não entrego não...'), e Terra Estrangeira, de Walter Salles e Daniela Thomas. Os demais incluem filmes do Chile (Nostalgia da Luz, de Patrício Guzmán), do México (Cobrador, de Paul Leduc) e da Argentina (Tangos, O Exílio de Gardel, de Fernando Solanas), entre outros títulos e países.
É a oitava edição do Festlatino e o evento ocorre no Memorial da América Latina, Cinesesc, Cinemateca Brasileira, Cinusp Paulo Emílio e Cinusp Maria Antônia, com entrada franca. A curadoria é de Francisco César Filho, o Chiquinho, de Jurandir Müller e do cineasta João Batista de Andrade, que selecionaram um total de 90 filmes, incluindo os da mostra competitiva Escolas, feitos por estudantes de escolas de cinema do Brasil e também do México, Argentina, Uruguai, Cuba e Equador. Chiquinho destaca a grande (r)evolução desses oito anos - "O Festlatino está cada vez mais sintonizado com a produção jovem e nova da América Latina. O que há de melhor passa aqui". A grande questão que o cinema da América Latina, como um todo, propõe para o espectador brasileiro se refere aos que nos une, e o que nos separa. A origem ibero-americana da colonização da região levou a uma diferença de língua, e só o Brasil, colonizado por Portugal, fala o português. O restante do continente foi colonizado pelos espanhóis e fala essa língua, mas não é um espanhol único nem castiço. Existem diferenças regionais tão fortes que o espanhol do Chile também difere do da Argentina, do Peru, da Bolívia, da Colômbia.
Mais do que essas diferenças de forma, o que o Festlatino busca celebrar e aprofundar são as semelhanças de fundo, e que remetem tanto à herança cultural quanto aos sistemas de produção e narrativas de que se valem os diretores/autores para refletir sobre o que é, afinal de contas, ser latino no século 21. Existem atrações que se impõem, em termos de programação. O ator Jorge Perugorría virou a cara do cinema cubano por seus papéis em filmes importantes - e pelo sucesso internacional que alcançou com Morango e Chocolate, de Juan Carlos Tabío e Tomás Gutiérrez Alea. Perugorría agora assina como diretor o longa Amor Crônico, nas bordas da ficção e do documentário. O filme, que abre hoje o festival para convidados, acompanha a cantora Cucu Diamantes, radicada nos Estados Unidos e que foi a primeira artista cubana a regressar ao país para fazer shows, nos últimos 50 anos. A própria Cucu estará presente na abertura.
Outros diretores e diretoras também estão confirmados no Festlatino. As uruguaias Ana Guevara e Leticia Jorge vão apresentar seu longa Tanta Água, que venceu o prêmio da crítica no Festival de Cartagena. O estreante argentino Estanislao Buisel mostra o filme que tanta sensação causou no recente Festival de Cinema Independente de Buenos Aires. Quem já viu garante que o mergulho do autor em busca do Barroco em livros, música e histórias em quadrinhos deu origem a uma narrativa impactante. O mexicano Emilio Maillé, que chega hoje, desvenda o universo visual do grande fotógrafo Gabriel Figueroa em Miradas Múltiples. E existem as atrações brasileiras, como Os Dias com Ele, de Maria Clara Escobar, que venceu a Mostra Aurora, a maior vitrine de produção independente do cinema brasileiro atual, em Tiradentes, Minas.
Um roteiro para se entender o presente
Guarde o local e o horário - sábado, às 5 da tarde, no Anexo dos Congressistas no Memorial da América Latina. Será a mesa dos homenageados, mas estarão presentes apenas dois deles - Guido Araújo, criador da Jornada Internacional de Cinema da Bahia, criada em 1972 e voltada à difusão de documentários e filmes de conteúdo social e político, e José Carlos Avellar, crítico, autor de Ponte Clandestina - Teorias de Cinema na América Latina, entre outros filmes.
Avellar e outro crítico, o uruguaio Manuel Martinez Carril, receberam carta branca do Festlatino para selecionar um conjunto de filmes expressivo não apenas da identidade latino-americana, mas que também espelhassem formas de produção e narrativa adequadas para colocar na tela a realidade humana e social e a diversidade cultural do continente. Estava acertado que ambos fariam a apresentação dos filmes escolhidos, mas Carril sofreu um acidente. Está bem, mas permanece em Montevidéu, impossibilitado de viajar ao Brasil para defender com Avellar as escolhas de ambos.
A ideia era privilegiar a produção mais recente, mas entre os 11 títulos selecionados está um clássico quase cinquentenário, como Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, de 1964. Num texto especial para o catálogo, sob o título Roteiro para a Imaginação, Avellar observa que talvez seja possível imaginar o cinema feito em diferentes pontos da América Latina na década de 1960 como uma espécie de roteiro para o que se filma agora - com muita liberdade e sem seguir ao pé da letra o que foi anotado, numa livre improvisação sobre o cinema daquela época. E Avellar acrescenta que, mesmo quando não querem ler nem seguir aquele roteiro, os novos autores não partem mais do zero, pois, de algum modo, o fato de esse cinema roteiro ter existido estimula até mesmo caminhos opostos aos que indica.
"Imaginemos, não para emprestar à década de 1960 uma auréola de passado glorioso e clássico, de um tempo mágico gerador de tudo o que veio depois, mas para perguntar se não teria começado a se desenhar ali um espaço que permite inserir num quadro comum filmes tão diferentes entre si (separados pelo tempo, pelo tema, pelo estilo) como Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, de 1963; Cobrador, de Paul Leduc, 2006; Deus e o Diabo, de Glauber; e Nostalgia da Luz, de Patricio Guzmán, 2010."
Os exemplos poderiam se estender ao infinito e, no próprio Memorial da América Latina, num horário e espaço já tradicional - o Cineclube -, os filmes desta semana, integrados ao Festlatino, mas sem ligação com a curadoria do evento - Os Fuzis, de Ruy Guerra, de 1964; A Hora dos Fornos, de Fernando Solanas e Octavio Getino, de 1968; O Chacal de Nahultero, de Miguel Littín, de 1969; e Yawar Malku, o Sangue de Condor, de Jorge Sanjinés, também de 1969, a questão levantada é sempre essa. A criação de uma identidade, o modo de produção e a forma narrativa, tudo precisa estar interligado para que, em diferentes línguas e países, o cinema continental realize seu projeto liberador, colocando na tela o rosto e a cultura, o sofrimento e a euforia, a luta e a resistência dos povos latinos.
Fonte: Caderno 2 / O Estado de S. Paulo
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