- O Globo
Segundo Beltrame, as UPPs eram apenas portas abertas pela polícia, através das quais o Estado devia passar para prover moradores daquilo a que tinham direito
Beltrame já dizia que as UPPs eram portas abertas pela polícia Ahistória quase sempre nos leva a um passado distante para que compreendamos a origem de nossas desgraças. Mas, às vezes, ela está ali mesmo, tão perto que mal podemos percebê-la. A atual presença de forças federais, para garantir a segurança pública do Rio de Janeiro, é um bom exemplo de erro besta que não precisava ter sido cometido.
Em dezembro de 2008, o novo programa de segurança pública, criado por José Mariano Beltrame, deu origem às Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Quando o programa começou a funcionar, eu já estava envolvido com a produção de “5Xfavela, agora por nós mesmos”, filme totalmente realizado por jovens cineastas moradores de favelas cariocas, lançado comercialmente dois anos depois. Estava na cara, nos olhos e nas palavras daqueles quase mil meninas e meninos do filme a curiosidade pela nova e original política de segurança.
Logo depois de “5Xfavela, agora por nós mesmos”, por sugestão dos próprios cineastas desse filme, iniciamos a preparação de uma nova produção. Ela se chamaria “4Xpacificação”, um longo documentário em quatro partes que pretendia descobrir e revelar o que estava acontecendo nas comunidades cariocas, depois da implantação das UPPs.
O projeto das UPPs não era o de transformar as favelas em improváveis paraísos urbanos, mas o de aproximá-las do que era a vida média no resto do país. Um dossiê do Ipea nos informava que, de acordo com o censo do IBGE de 2010, o rendimento anual médio de domicílios na área da Lagoa, na Zona Sul do Rio, era de cerca de R$ 6 mil. No Complexo da Maré, ele era inferior a R$ 425. Essa discrepância absurda ocorria, em grande parte, devido à ausência dos serviços públicos a que todo cidadão brasileiro devia ter direito e, como consequência, à ausência de oportunidades equivalentes para todos.
Segundo Beltrame, as UPPs eram apenas portas abertas pela polícia, através das quais o Estado devia passar para prover aquelas populações daquilo a que elas tinham direito. As armas do Estado afastavam os bandidos que haviam tomado a favela pela violência e assim garantiam o que o Estado tinha o dever de fazer atravessar por aquele portal de liberdade: educação, saúde, saneamento, emprego, tudo o que o Estado devia a essas populações.
Dava dó ver Beltrame, o dia inteiro, explicando essa sua política de pacificação a todos que se aproximavam dele. O secretário a repetia para os moradores e seus líderes, para todo tipo de jornalista que chegasse perto, para a televisão local ou internacional, para profissionais e amadores. E sobretudo para os políticos, dos quais ele sabia depender seu programa. Os mesmos políticos e gestores que usariam o que serviria ao atendimento das populações faveladas, em seu próprio benefício de propinas e comissões.
Enquanto ouvíamos Beltrame desenvolver o que chamei, na intimidade, de sua “Teoria do Portão Armado”, assistíamos, aqui e ali, aos primeiros resultados positivos da experiência. Nos grandes complexos da Maré e do Alemão, algumas comunidades começavam a receber conhecidos prestadores de serviços, de reputação muitas vezes nacional, que se instalavam nas favelas atraídos pelo que a segurança pública lhes garantia.
Uma tarde, fui convidado para a inauguração de uma sala de cinema na Nova Brasília, no Complexo do Alemão. Não só naquela tarde, como também pelos próximos meses afora, a sala em questão se tornou recordista de ocupação no Rio de Janeiro. Não muito distante dela, vi uma agência de grande banco em pleno funcionamento. E um desses parques infantis que já estava fora de uso, em frente a uma escola local reaberta recentemente. A vida comercial e cultural da favela passava a se equiparar à da cidade lá embaixo.
Visto como uma vitória de quem estava no poder, mesmo que quem estava no poder não tivesse nenhum interesse nessa vitória, o sucesso das UPPs foi ignorado e boicotado por todos. Desonestamente massacrado pelos inimigos de quem estava no poder, abandonado pela mediocridade corrupta dos pequenos interesses eleitorais, o projeto das UPPs foi tratado por candidatos de esquerda como uma ocupação militar das favelas e pelos de direita como despesa excessiva e desnecessária.
Reproduzindo o espirito da época, um recente secretário estadual de Segurança declarou que “a UPP foi uma tentativa ousada demais, (...) nós fomos ousados demais e talvez estejamos pagando um preço caro por essa tentativa de levar a paz a todas as áreas, inclusive as mais carentes”. Quer dizer, não merecemos nada que seja superior à nossa carência, à nossa insignificância como povo e nação.
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Cacá Diegues é cineasta
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