- Folha de S. Paulo
Homens e mulheres opinam sobre tudo e aprendem uns com os outros
O conceito de "lugar de fala" tem origem numa constatação evidente: não temos experiência direta de como é estar na pele de outro. Um branco no Brasil não sabe, em primeira mão, como é sofrer o racismo. Um homem não experimenta o receio da violência sexual que espreita uma mulher.
Assim, para que todos entendam melhor como é ser vítima de machismo, racismo, homofobia e tantos outros preconceitos, é um bom exercício escutar o que os diretamente afetados —os que têm "lugar de fala"— têm a dizer.
Na prática, contudo, o que poderia ser um chamado ao ouvir foi transformado num truque retórico para silenciar. Foi o que se viu no programa da Fátima Bernardes (dia 13) quando a youtuber Kéferainter rompeu, ridicularizou e depois encerrou a discussão com um jovem da plateia alegando que ele não tinha "lugar de fala" para falar de feminismo. Ali no programa, ela recebeu aplausos entusiasmados. Fora dele, o showzinho militante angariou a antipatia geral.
Aquela troca não foi exceção. No debate público de maneira geral, a expressão "lugar de fala", hoje, é uma tentativa de intimidar o interlocutor a baixar a cabeça. Previsivelmente, só funciona com quem já adere à premissa básica de que apenas mulheres são capazes ou devem discutir sobre o feminismo.
A premissa é equivocada. Todo ser humano é capaz de algum nível de racionalidade e empatia. Isso garante que podemos conversar. Ouvir o outro é relevante justamente porque, por meio da empatia, conseguimos nos colocar em seu lugar e aprender com isso. Graças à razão, trocamos ideias, averiguamos fatos e avaliamos argumentos. Isso independe do sexo de cada um. Uma mulher pode estar errada inclusive quando o tema da conversa é a situação das mulheres.
Além de intelectualmente pobre, a carteirada é estrategicamente ineficaz. Goste-se ou não, todo mundo opina e continuará opinando sobre tudo. Hoje, qualquer um tem acesso aos megafones que chegam a milhões. Não é possível silenciar um ponto de vista. Wallace, o rapaz silenciado por Kéfera na TV, de simpatizante com ressalvas do feminismo agora é uma pequena celebridade nas redes sociais e em sites de direita antifeminista.
A opção que resta a todo e qualquer movimento é entre estabelecer o diálogo com todos, tentando atrair mais pessoas (que pensam por conta própria e não vão abaixar a cabeça) para a defesa de bandeiras importantes ou transformar-se numa identidade sectária que persegue e exclui qualquer pequeno desvio, isolando-se da maioria não convertida da sociedade. Isso pode servir à carreira de autores e políticos de nicho, mas não contribui para os objetivos sociais maiores a que o movimento serve.
Na semana passada revelou-se que o médium João de Deus pode ter abusado sexualmente de centenas de mulheres. A violência doméstica e a discriminação no mercado de trabalho continuam reais. A bandeira do feminismo, portanto, segue relevante. Mas no desejo de "vencer" debates, pode estar perdendo a sociedade. Mesmo entre as mulheres, quem foi o candidato mais votado nas eleições?
"E agora um homem quer opinar sobre feminismo?" Claro. Homens e mulheres opinam sobre tudo e aprendem uns com os outros. Seria uma tolice não fazê-lo. Talvez eu esteja completamente errado sobre várias dessas questões. Para mostrar isso, de nada adianta apontar o meu gênero; será necessário rebater ideias e argumentos, coisa que a carteirada do "lugar de fala" só tem dificultado.
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