- O Globo
A meta almejada é um Brasil varrido de negros e indígenas
O governo Jair Bolsonaro escolheu a data de aniversário de 520 anos da chegada dos portugueses ao Brasil para anunciar à nação o plano de recuperação econômica pós-pandemia. Batizou de Pró-Brasil o, até aqui, mal esboçado pacote de investimentos de R$ 30 bilhões para gerar um milhão de empregos. Ilustrou a apresentação com a foto de cinco crianças brancas — duas meninas, três meninos — retiradas de um banco de imagens estrangeiro. Amarrou a proposta no slogan “Construção de um país em progresso”. O punhado de referências não deixa dúvidas da meta almejada: um Brasil varrido de negros e indígenas; livre da diversidade racial autodeclarada por quase seis em cada dez habitantes. É a materialização do sonho dos invasores que exterminaram povos nativos, sequestraram e escravizaram africanos e, aos dois grupos, impuseram língua, hábitos e religião.
O escritor Eduardo Moreira, autor de “Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa” (Civilização Brasileira, 2019), protestou. A ONG Educafro, dedicada à inclusão de jovens negros e de baixa renda no ensino superior, reivindicou a suspensão da peça, antirretrato da brasilidade. Fato é que discursos e imagens supremacistas brancas não são novidades no Executivo federal. O episódio mais descarado — a reprodução em forma e conteúdo de mensagem de Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda da Alemanha nazista — levou à exoneração de Roberto Alvim da Secretaria de Cultura. Mas há múltiplos sinais de que nem a diversidade nem as desigualdades brasileiras comovem corações e mentes do Planalto.
A crise da Covid-19 não forjou as mazelas do país. Escancarou-as. E a forma — lenta, atrapalhada, ora incompetente — como o governo responde à vulnerabilidade socioeconômica agravada pela necessidade de isolamento social diz muito sobre a falta de intimidade ou de interesse nos grupos mais fragilizados da pirâmide social. Ainda ontem, o chefe da Casa Civil, general Braga Netto, informou que 3,5 milhões de empregos formais foram preservados com a publicação da Medida Provisória 936, que permitiu suspensão de contratos de trabalho e redução de salário e jornada em 25%, 50% ou 70%. As estatísticas do Caged não terão a mácula das demissões, mas a queda de renda imposta aos assalariados com carteira assinada, apenas parcialmente compensada com frações de um benefício assemelhado ao seguro-desemprego, terá colaterais recessivos.
Na arquitetura do auxílio emergencial de R$ 600 aos brasileiros subitamente empobrecidos pela crise do coronavírus, o governo preteriu a articulação com organizações da sociedade civil e o sistema nacional de assistência social para alcançar os mais vulneráveis. Instituiu cadastramento por aplicativo de smartphone e site, a despeito de um em cada cinco moradores de domicílios brasileiros não ter acesso à internet fixa ou móvel, segundo a última Síntese de Indicadores Sociais do IBGE; no Nordeste, a proporção passa de 30%. A política “Vocês que lutem” pariu as filas em escritórios da Receita Federal, casas lotéricas e agências da Caixa, num momento em que os brasileiros deveriam ter tranquilidade para seguirem a recomendação de isolamento social.
A assistência social é direito assegurado a todos os brasileiros na Constituição Federal, independentemente de contribuírem ou não para o sistema de seguridade. Saber quem são, onde estão e como chegar aos vulneráveis em períodos críticos é dever do Estado. Na última década e meia, o país estruturou um bom programa de combate à miséria, o Bolsa Família. É capaz — como fez — de ampliar o total de beneficiários usando o Cadastro Único. Ao longo da história, montou uma rede de proteção social ancorada no trabalho formal (aposentadoria, seguro-desemprego, FGTS, abono, auxílio-doença), que crescentemente perde espaço para a admissão sem carteira e a multiplicação dos conta própria sem CNPJ, microempreendedores individuais e profissionais vinculados ao contrato intermitente.
O economista e sociólogo Marcelo Medeiros, pesquisador do Ipea e professor visitante na Universidade de Princeton (EUA), diz que os dois conjuntos de políticas atendem aos terços inferior e superior da população brasileira. No hiato entre topo e base da pirâmide está um grupo descoberto tanto pela legislação trabalhista quanto pela política focalizada nos extremamente pobres. “O que o país precisa fazer — e rapidamente, porque o futuro se tornou mais incerto — é desenvolver mecanismos de proteção social que não dependam do trabalho formal para evitar que dois terços dos brasileiros caiam no abismo da próxima crise”, recomenda.
O problema é que, à beira da vulnerabilidade, estão mulheres, negros, nordestinos. Exatamente os grupos que não estão no retrato do Pró-Brasil. Eles que lutem.
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