sexta-feira, 24 de abril de 2020

Fernando Abrucio* - Por que Bolsonaro briga com os governadores

- Valor Econômico/Eu & Fim de Semana

O bolsonarismo é um movimento permanente de guerra para destruir inimigos que sejam obstáculos à permanência do Mito no poder

O combate à covid-19 está sendo prejudicado pela disputa política entre o presidente Bolsonaro e os principais atores institucionais do país. Se o estímulo a movimentos autoritários contra os Poderes da República é uma ameaça real à democracia, a briga com os governos subnacionais é o principal obstáculo na luta contra a pandemia, pois são eles os principais responsáveis pela implementação da política de saúde.

O fato é que o federalismo construído desde 1988 se tornou um obstáculo para o projeto bolsonarista de poder, e os governadores de Estado se tornaram inimigos centrais do bolsonarismo. Hoje, os bolsominions xingam mais João Doria do que Lula no esgoto das redes sociais e nas “carreatas da morte” - aquelas que ignoram o sofrimento dos doentes dentro dos hospitais.

A compreensão dessa briga com os governadores ajuda a entender melhor o sentido da política bolsonarista, não só em seu momento atual, mas na sua trajetória desde a posse presidencial. O federalismo tem sido uma arena estratégica para a imposição do novo projeto de poder, tendo um papel nuclear em quatro visões que definem o bolsonarismo: o modelo de Estado, o lugar reservado às políticas públicas (especialmente as de cunho social), a noção do alcance e limites do poder governamental, bem como a estratégia político-eleitoral.

A visão de Estado do bolsonarismo é uma forma peculiar de ultraliberalismo econômico. Propõe não só a redução do tamanho e do papel do aparato estatal, mas pretende repassar a responsabilidade das atividades mais ligadas ao social aos governos subnacionais. No fundo, o presidente Bolsonaro repete aqui as ideias de Trump, seu guru favorito.

O trumpismo tem radicalizado a visão iniciada por Nixon e implementada mais fortemente por Reagan de que a União deveria diminuir sua função governamental nas principais políticas públicas, devolvendo o poder aos estados e poderes locais. Só que o atual governante americano foi além: quer se desresponsabilizar pelo combate aos problemas sociais, mas resguardar o direito de interferir ou até comandar as ações de prefeitos e governadores. Este modelo gerou uma ineficiência enorme no combate à covid-19 nos EUA, resultando num número impressionante de mortes para um país tão desenvolvido.

A cópia brasileira desse modelo equivocado de federalismo não começou com a pandemia. Desde o início do mandato, Bolsonaro quer reduzir o tamanho do Estado num processo cuja maior consequência para a dinâmica federativa é diminuir fortemente a ação da União no combate às desigualdades.

Ao deixar mais solitários Estados e municípios, os comandantes atuais do governo federal estão diminuindo a capacidade de o país garantir a igualdade de oportunidades aos cidadãos independentemente de onde eles tenham nascido. Isso é exatamente o oposto do que preconiza a Constituição de 1988.

O paradoxal desse modelo, tanto na versão original de Trump como na proposta tupiniquim de Bolsonaro, é que ao mesmo tempo que a intervenção governamental da União se reduz, as principais decisões que ainda cabem ao governo federal ou que ele tem de tomar nos momentos de crise, são tomadas com pouca ou nenhuma participação dos governos subnacionais. Pior: por vezes, ambos os presidentes querem impor suas opiniões para prefeitos e, sobretudo, governadores. É o que está acontecendo agora na discussão sobre o isolamento social.

No fundo, o trumpismo e o bolsonarismo querem que os Estados fiquem com ônus e a responsabilidade pelo o que der errado (serão os culpados, em outras palavras), enquanto os chefes do Executivo federal ficariam com o papel de salvadores da pátria.

Não por acaso as alianças entre os Estados brasileiros cresceram desde o início de 2019. Ficaram mais desamparados com o federalismo bolsonarista e precisavam continuar resolvendo os problemas que antes eram mais compartilhados com a União. Criaram instâncias como o Consórcio do Nordeste, ativaram mais fortemente os conselhos interestaduais de políticas públicas (como se tem visto nas políticas de educação e saúde) e tornaram o seu Fórum Nacional relevante.

O modelo de Estado bolsonarista casa-se com a concepção de políticas públicas que busca enfraquecer as formas de cooperação intergovernamental que têm sido implementadas na federação brasileira desde a Constituição de 1988. Os principais setores criaram Sistemas de Políticas Públicas que supõe fóruns federativos com a participação dos três níveis de governo. E mesmo naquelas áreas em que os sistemas não existem ou não são tão fortes, foram criados canais formais e informais de diálogo com a União.

Nessa lógica de federalismo cooperativo construído nos últimos trinta anos, cabia ao governo federal papel central de coordenação das ações entre os três entes. Esse processo passou por políticas de financiamento, indução de modelos de gestão e definição de normas nacionais, sendo que todo esse conjunto de medidas tinha que passar, em maior ou menor medida, por conversas e negociações federativas.

Esse modelo vem sendo abandonado pelos principais ministérios do governo Bolsonaro. O MEC, por exemplo, criou programa de alfabetização sem conversar com os Estados e municípios e no momento tem sido incapaz de atuar conjuntamente com governadores e prefeitos para planejar como a educação vai lidar com os efeitos da pandemia.

Exemplos semelhantes desse federalismo enfraquecedor da cooperação intergovernamental aparece em outros setores. A redução do aspecto cooperativo da Federação, ressalte-se, vai aumentar a desigualdade territorial no país - e exatamente num governo recheado de militares, membros de uma instituição que sempre teve orgulho de atuar em prol da unidade nacional.

É interessante notar que embora os municípios tenham relativamente obtido mais poder com a nova ordem constitucional do que os Estados - mesmo porque antes de 1988 a autonomia das municipalidades era extremamente frágil -, os governos estaduais agora se tornam mais relevantes do ponto de vista das políticas públicas porque os governos locais foram muito abandonados pela União. Os governos FHC e Lula montaram um modelo federativo que estabelecia uma relação direta e muito forte do governo federal com as prefeituras, pulando as governadorias. Agora, diante da ausência de Brasília, os prefeitos precisam mais dos governadores para resolver seus problemas sociais, fato que ficou muito claro com o combate à covid-19, tanto na definição das normas como na implementação das ações hospitalares.

Os governadores transformaram-se em pedras no sapato do bolsonarismo, ademais, porque a federação constitui um dos principais controles institucionais no presidencialismo brasileiro. Obviamente que o Congresso Nacional, o STF e os partidos políticos são muito importantes para limitar e fiscalizar o poder presidencial, e, de uma forma ou de outra, têm conseguido controlar parte ao autoritarismo de Bolsonaro. Mas a conjuntura política tem favorecido que os governos estaduais sejam um contrapeso essencial ao projeto bolsonarista de poder.

Não é a primeira vez que governadores ou líderes regionais atuam como instrumentos de limitação do poder presidencial. Só que isso ocorria principalmente em transições de períodos autoritários, e o Brasil já é democrático faz mais de 30 anos, o que realça que o papel dos governos estaduais talvez esteja vinculado à campanha bolsonarista contra as instituições e a “velha política”, cujo resultado foi o enfraquecimento do sistema partidário e, em menor medida, do próprio Congresso Nacional.

Mesmo com uma situação financeira ainda bastante difícil, os governadores foram eleitos na mesma onda “moralizante” que catapultou Bolsonaro à Presidência da República e têm vários instrumentos de disputar politicamente o eleitorado, por meio de políticas públicas e da capacidade de gerar ordenamento jurídico, como no caso do isolamento social. Afora isso, muito por conta da política do confronto institucional adotada pelo bolsonarismo, o STF tem ajudado os governos estaduais neste embate, dando-lhes mais recursos e autonomia.

Para completar o quadro que dá sentido a esse conflito entre o presidente e os governadores, é fundamental tocar na principal preocupação de Bolsonaro: a eleição de 2022. Nunca houve um governo tão focalizado na estratégia eleitoral, em detrimento do foco nas políticas públicas, como o atual. O bolsonarismo é um movimento permanente de guerra para destruir inimigos que sejam obstáculos à permanência do “mito” no poder. Numa conjuntura de fragilização do sistema partidário, os chefes dos Executivos estaduais ganharam proeminência. Primeiro, pelo poder que detêm. Segundo, pela exposição que estão tendo em meio à pandemia. Por fim, porque podem atuar como líderes que agregam forças que podem se juntar contra o que representa o atual presidente.

Em outras palavras, o medo de Bolsonaro é que tanto os governadores mais à esquerda do Nordeste como alguns do Centro-Sul sejam presidenciáveis ou cabos eleitorais fortíssimos, numa lógica que os colocará estrategicamente contra o bolsonarismo. Isso faria com que a próxima eleição se torne muito diferente do pleito de 2018. Desse modo, mudar o federalismo e brigar com os governadores vai além do curto prazo. O que está em jogo é o projeto de poder bolsonarista de longo prazo.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP

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