- Valor Econômico
Se todas as pessoas enquadradas receberem a renda emergencial a pobreza extrema seria praticamente eliminada
A pandemia da covid-19 está provocando várias mudanças em quase todos os países do mundo. Ela está afetando o modo de vida das pessoas, os empregos, os preços dos ativos, o funcionamento dos negócios, a pobreza e a desigualdade.
Essas transformações são especialmente difíceis para as famílias mais pobres, que estão no setor informal, não têm poupança e, portanto, precisam de rendimentos diários para poder sustentar suas famílias. O que poderá acontecer com as crianças nessas famílias? Será que o programa de renda básica emergencial será suficiente para protegê-las? Quais serão os efeitos dessa crise sobre a popularidade do presidente?
Vários estudos acadêmicos mostram que o estresse materno durante a gestação afeta o desenvolvimento dos bebês, diminuindo seu peso ao nascer e sua produtividade futura. Assim, a incerteza das mães com relação às suas condições econômicas para comprar comida e o receio de ficarem doentes já estão afetando as crianças que irão nascer esse ano, os “filhos do Coronavírus”.
Sabemos também que a velocidade do desenvolvimento cerebral é muito maior nos primeiros anos de vida do que nos demais períodos. Nessa fase, a criança precisa viver num ambiente tranquilo, mantendo interações saudáveis com seus pais. Mas a crise está fazendo com que muitas pessoas estressadas fiquem o tempo todo juntas, em casas muito pequenas. Isso pode provocar alterações no cérebro da criança que poderão fazer com que ela não desenvolva as habilidades necessárias para o aprendizado. Quantas famílias terão que passar por isso?
Um novo estudo mostra que cerca de 37 milhões de brasileiros trabalham em ocupações e setores vulneráveis ao distanciamento social, ou seja, extraem seus rendimentos diretamente de venda de produtos a pessoas, prestação de serviços ao público e a empresas em áreas urbanas. Esses setores empregam desproporcionalmente mais mulheres, negros, empregados sem carteira assinada e trabalhadores por conta própria, que ganham salários mais baixos e vivem em famílias mais pobres do que os trabalhadores nos demais setores.
Nossas simulações indicam que numa situação limite, em que todos os trabalhadores informais desses setores perdessem o emprego, a taxa de desemprego iria para 28%, a pobreza passaria de 17% para 23%, o Gini aumentaria de 0.55 para 0.59 e a renda domiciliar per capita cairia 8%. O Estado que mais sofreria nesse caso seria o Amapá, em que a pobreza aumentaria 12 pontos percentuais, pois tem a maior concentração de trabalhadores informais em setores vulneráveis.
Para atenuar os impactos do distanciamento social nas famílias, o Congresso aprovou, após pressão da sociedade civil, o programa de Renda Básica Emergencial, que está sendo implementado pelo governo federal. Esse programa atende as pessoas com mais de 18 anos de idade, que não estão empregadas no setor formal, não recebem aposentadoria, seguro-desemprego ou programa de transferência de renda e que têm renda mensal de até três salários mínimos (R$ 3.135). O benefício será pago por três meses para no máximo duas pessoas por domicílio.
Nossas simulações indicam que se esse benefício fosse transferido apenas para trabalhadores informais nos setores vulneráveis que perdessem o emprego e atendessem aos critérios do programa, ele atenderia 9 milhões de pessoas e a pobreza diminuiria de 23% para 19%. Além disso, a renda média e a desigualdade voltariam à situação pré-crise. Isso significa que se o benefício fosse concedido somente para os trabalhadores que perdessem o emprego no setor informal, atenuaria os efeitos da crise, supondo que todos conseguissem realmente receber o benefício.
Agora vamos supor que todas as pessoas que se enquadram nos critérios do programa (incluindo o limite de renda) recebam o benefício, mesmo aquelas que não tenham perdido emprego com a crise. Nesse caso, 32 milhões de brasileiros receberiam o auxílio. Como muitos dos novos beneficiados não estavam trabalhando mesmo antes da crise (e eram pobres), isso faria com a pobreza diminuísse, com relação à situação inicial sem crise, de 17% para apenas 6%. A pobreza extrema seria praticamente eliminada nesse caso. Isso mostra como um programa desse tipo já deveria ter sido implementado no Brasil.
Mas, na verdade, para muitos trabalhadores informais não há como averiguar o critério de renda, pois eles são “invisíveis” para o governo. Assim, o número de beneficiados deverá ser bem maior do que o público-alvo inicial do programa. Isso já era previsto, pois o mais importante agora é atenuar os efeitos da crise sobre as famílias mais pobres, ficando a questão de focalização para um segundo momento, se o programa continuar.
Assim, no caso em que todos os trabalhadores informais recebem o benefício, independentemente da sua renda, além de todos os que já se enquadravam nos critérios do programa, 52 milhões de pessoas são beneficiadas. Esse número está próximo do que deverá ocorrer na realidade. A redução adicional na pobreza nesse caso seria pequena com relação ao caso em que somente o público-alvo recebe o benefício. Assim, se o programa for mantido no futuro, deveríamos focalizar o benefício nos que mais precisam dele.
É interessante também especular sobre os efeitos políticos da crise e suas consequências. Antes da pandemia, o governo federal estava restringindo os gastos com o programa Bolsa Família, represando o número de beneficiários. Com a crise, houve forte pressão da sociedade civil e o Congresso acabou aprovando um programa de transferência de renda que em circunstâncias normais nunca teria sido aprovado, pois sofreria forte oposição do governo e de alguns setores da sociedade.
Mas, como o benefício foi implementado pelo governo federal, é possível que a avaliação do presidente até aumente entre os mais pobres. Vários estudos mostram que o programa Bolsa Família trouxe dividendos políticos, por exemplo. Tudo vai depender da duração do distanciamento social, dos efeitos da pandemia sobre a mortalidade por todo o país, da dimensão do desastre na economia e da duração do programa de renda emergencial. Mas o importante agora é salvar a vida das crianças mais pobres.
*Naercio Menezes Filho é professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper e professor associado da FEA-USP e membro da Academia Brasileira de Ciências.
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