sexta-feira, 24 de abril de 2020

José de Souza Martins* - O conflito que nos preside

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Jair Messias tem dado indicações de que pretende ser o vingador do fim da ditadura militar. Fim que foi negociada pelas Forças Armadas, que queriam voltar aos quartéis

Ao chegar para a posse do novo ministro da Saúde, o vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, brincou com os jornalistas: “Está tudo sob controle. Não sabemos de quem...”.

É possível, mas não é provável, que o general não saiba quem, de fato, controla as decisões sobre a epidemia e, portanto, quem preside a República. Sua observação expressa o fato inquietante de que os muitos gestos impróprios do presidente, em desacordo com a liturgia de sua alta função, são desafios que constituem atos de renúncia tácita à Presidência.

Empossado o novo ministro da Saúde, designou o presidente um almirante para representá-lo no ministério, no trato da questão da epidemia. Num Estado “normal”, quem cumpre essa função é o ministro. Portanto, ele nomeou um ministro de cuja lealdade dúvida.

Dois dias depois, no domingo, o presidente foi à porta do quartel-general do Exército, em Brasília, juntar-se a um grupo subversivo de manifestantes de direita que pedia um golpe militar contra a ordem democrática. Tossia, tinha dificuldade para falar. Ele estimula o comportamento divergente, que põe em risco a saúde e a vida de um número enorme de pessoas.

No dia seguinte, na porta do Planalto, em novo encontro com bajuladores, tentou desfazer o malfeito e fez pior. Declarou: “A Constituição, realmente, sou eu”. Plagiou a frase famosa de Luís XIV (1638-1715), enunciado emblemático do absolutismo monárquico: “O Estado sou eu”. Um presidente não é a Constituição: é o seu servidor.

Jair Messias tem dado indicações de que pretende ser o vingador do fim da ditadura militar. Fim que foi negociado pelas Forças Armadas, que queriam voltar aos quartéis. Cujo trâmite já estava anunciado em famoso discurso do general Golbery do Couto e Silva (1911-1987) na Escola Superior de Guerra.

Ele quer reverter o processo histórico. Seu comportamento sugere que a história está errada, na sociedade errada e com o povo errado. Nas várias expressões dessa mentalidade, são fortes as evidências de socialização no confinamento do quartel, do que Erving Goffman (1922-1982) define como instituição total. O general Costa e Silva já havia dado indicação semelhante quanto a isso, de que, nos tempos de quartel, suas ordens eram obedecidas, na Presidência não.

Durante a campanha eleitoral, em 2018, o general Mourão declarou que um dos objetivos da candidatura bolsonarista era o desmonte do Estado, deformado por funções nele introduzidas pelo populismo e pelo comunismo. Interpretação minúscula que tumultua a nossa paz política desde os anos de 1930. Já nas revoltas tenentistas, o propósito era claro: reproclamar a República e, por meio de uma ditadura, preparar a democracia. Nos documentos que li, da Revolução de 1924, em São Paulo, os jovens oficiais deixavam isso claro.

As oligarquias políticas, que representavam o que acabará sendo definido como o Brasil atrasado, faziam do Exército sua força auxiliar de poder. Interferiam nas promoções militares, designavam quem seria promovido a general. Os jovens oficiais queriam um Exército profissional. Eles chegarão ao poder com Getúlio Vargas (1882-1954), na Revolução de Outubro de 1930. Finalmente, com o golpe de 1937, em nome de um Estado nacional, enfraqueceram as bases políticas das oligarquias, que eram os Estados e municípios.

Um dos ativos promotores do golpe, o general Gois Monteiro (1889-1956), que fora ministro da Guerra, estava temporariamente enlouquecido pela dor da perda do filho, aspirante a oficial, morto em acidente aéreo. Durante a fase do golpe, escrevia cartas ao filho morto. Nessas cartas, que li no Arquivo do Exército, narrava as circunstâncias do golpe.

De certo modo, os antigos tenentes e seus propósitos estarão na autoria do golpe de 1964. Mas a ditadura teve que se compor com a política retrógrada e localista que imaginava combater. Cometeu o erro de associar corrupção e subversão. A corrupção oligárquica nada tinha ver com a ascensão política das esquerdas, que pouco ou nada tinha a ver com comunismo. O golpe favoreceu os corruptos e perseguiu os progressistas. Esvaziou-se e perdeu-se.

Jair Messias é uma extemporânea sobrevivência desse equívoco, na polarização entre a Presidência e o Congresso Nacional, entre a massa alucinada das ruas, que ele considera o povo, e as instituições democráticas, que supostamente conspiram contra ele.

Diferentemente do que ele pensa, não é ele quem joga o jogo. É o jogo da história que joga com ele. É o “não sabemos quem” do general Mourão.

A epidemia do coronavírus apenas precipitou o confronto político entre centralismo autoritário e democracia, entre o Executivo e o Congresso. Ela colocou o país diante de uma redefinição do federalismo, o que pode nos levar ao parlamentarismo.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, organizador e co-autor de "A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira" (Hucitec).

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