quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Hélio Schwartsman - De onde vem a moral?


- Folha de S. Paulo

A moralidade é a solução encontrada pela evolução para compatibilizar os impulsos egoístas do indivíduo e a necessidade de reduzir conflitos dentro do grupo

Immanuel Kant conclui a “Crítica da Razão Prática” afirmando que duas coisas o enchiam de admiração: “O céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim”.
Não perco as colunas de Contardo Calligaris, e a da última quinta-feira (6) não foi uma exceção. Concordo com 95% do que Contardo escreveu ali. De fato, não há boçalidade muito maior do que imaginar que não exista moralidade fora da religião. Acho até que podemos radicalizar o argumento. Não há nada mais imoral do que a moral diretamente extraída das Escrituras, que nos autorizam a vender filhas como escravas (Ex. 21:7) e nos obrigam a matar gays (Lv. 20:13).

Receio, porém, que Contardo tenha sido excessivamente kantiano ao sugerir que os valores morais têm origem em disposições internas do indivíduo. É claro que, num sentido muito geral, tudo é ao menos parcialmente intrapsíquico. Acredito, contudo, que a moralidade seja um fenômeno com fortes componentes externos (situacionais). Ela é forjada na teia de relacionamentos sociais que mantemos com nossos semelhantes.

Não sou heideggeriano o bastante para achar que etimologias escondem verdades secretas, mas não é uma coincidência que os termos “ética” e “moral” derivem respectivamente das palavras grega e latina para “costume”. Consideramos aceitáveis comportamentos que percebemos como adotados pela maioria dos pares. É isso o que faz com que a moral varie tanto geográfica e temporalmente.

E não surpreende que seja assim. A moralidade é a solução encontrada pela evolução para compatibilizar os impulsos egoístas do indivíduo e a necessidade de reduzir conflitos dentro do grupo. Essa permanente tensão entre bichos que são ao mesmo tempo rivais e aliados desemboca em emoções e sentimentos socialmente relevantes como inveja, raiva, gratidão, compaixão, vergonha, culpa, que são a tabela periódica com a qual cada sociedade constrói seu código moral.

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