A comoção
perante os mesmos fenômenos de injustiças na saúde não dá início a ações
semelhantes
Mudou o modo de pensar sobre
o SUS. Antes da pandemia, Rodrigo Maia pretendia expandir os planos privados de
saúde, “ampliar a base de brasileiros segurados de 40 milhões para 60 ou 70
milhões”, e agora passou a considerar que “tinha uma visão muito pró-mercado
privado de saúde, mas a gente vê que o SUS é importante”. O uso do plural (a
gente, nós) subentende os que leem e interpretam de modo similar as
estatísticas e se preocupam com o atendimento aos doentes.
Nós somos pessoas orientadas
pela Ciência, concordamos com as medidas de isolamento social, com o uso
correto de máscaras e com a relevância do SUS. Vemos os mesmos fenômenos e os
interpretamos de modo similar, mas nem sempre compartilhamos sentimentos iguais
perante a indignidade e a insanidade. O consenso em torno do que seria do
Brasil sem o SUS é insuficiente para igualar as expectativas sobre o futuro.
Setores empresariais, instados pela declaração do presidente da Câmara sobre o
SUS, querem saber: “Como você pensa que podemos melhorar o SUS, mas sem ser
radical, né?”. Querem respostas sobre um SUS que não se torne um estorvo, que
alavanque os negócios setoriais.
A concordância sobre a
omissão e a indignidade subjacentes às mortes causadas pela Covid-19 não iguala
expectativas sobre o futuro. No lugar da pergunta — como nós faremos para ter
um SUS importante? —, volta-se ao “nós contra vocês”. Erudição embolada com interesse
privado resulta na crença: planos privados desoneram o SUS. Um ponto de vista
respeitável, mas sem nenhum fundamento científico.
O alegado alívio de demanda
para a rede pública jamais ocorreu. No período 2013-2015 (quando houve o maior
aumento do número de planos), a assistência suplementar realizou entre 18,5% e
19% do total dos partos. Cresceram os partos realizados pelo SUS e pela
assistência suplementar. Incremento nos planos privados não é garantia de
retração da procura pelo SUS. Segundo a Pnad-Covid-19, realizada pelo IBGE em
maio e junho de 2020, 78,2% e 82,3% dos que buscaram serviços em função de mais
de um sintoma de coronavírus a cada mês foram ao SUS (a resposta poderia
indicar mais de um local, ou seja, a rede pública e a privada).
Essas informações não
significam que o setor privado é inexpressivo, pode desaparecer, apenas
questionam a existência de compartimentos separados num sistema de saúde
complexo. Como todos sabem, mas nem sempre é conveniente admitir, uma parcela
de quem tem plano usa o SUS, outra paga, além da mensalidade das operadoras,
consultas médicas e dentistas particulares. Contratos com efetiva proteção
financeira e qualidade assistencial são para poucos. Os transplantes, mesmo
para os ricos, dependem do SUS. A comprovação de que planos privados não
solucionam problemas do SUS não altera uma vírgula na história, mas talvez
contribua para que a explicitação de interesses seja critério obrigatório de
credenciamento ao debate.
Reagimos com as mesmas
palavras para exprimir a repulsa às injustiças na saúde, dizemos que é preciso
pôr fim a tanta abominação. Mas a comoção perante os mesmos fenômenos não
desencadeia ações semelhantes. Parte dos indignados sente muito, mas não se
interessa pelas causas das diferenças na probabilidade de morrer entre
indígenas, negros, pobres e os segmentos sociais com maior renda. Tampouco
divulgam a situação de saúde precária dos clientes de planos privados. A
pesquisa Vigitel 2018 registrou uma proporção de excesso de peso um pouco mais
elevada para clientes de planos de saúde em Fortaleza, Rio de Janeiro e São
Paulo do que na população em geral.
Todos nos indignamos, mas,
quando chega a vez de definir como evitar essas atrocidades, as afinidades
evanescem. O projeto de planos de saúde com coberturas ainda mais reduzidas e
menor preço teve até agora duas versões: a oficial, debatida em comissão no
Congresso Nacional, cujo relator foi o deputado Rogério Marinho, e o documento
apócrifo noticiado pelo jornalista Elio Gaspari. Ambas foram engavetadas, tinham
em comum um “nós” que pretensamente falaria por todos. Um “nós” minúsculo,
reunido em torno de argumentos frágeis, indefensáveis. Caso a pergunta sobre o
que fazer com a saúde fosse endereçada a um “nós” ampliado, aos familiares dos
mais de cem mil mortos, qual seria a resposta?
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