sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Flávia Oliveira - Esplendor da diversidade

- O Globo

Como os EUA, o Brasil também anda repartido entre retroceder ou avançar na agenda de direitos civis

Em tempos de democracias ameaçadas, bom saber que, em 120 anos, nunca tantos — e tão diferentes — eleitores votaram nos Estados Unidos do pleito facultativo. A Universidade da Flórida estimou que pelo menos 160 milhões de pessoas participaram da eleição presidencial. O comparecimento de dois em cada três eleitores é o maior desde a virada do século XX, com pandemia, com tudo. Um feito. No voto popular, Joe Biden tornou-se o candidato à Casa Branca mais votado da História, escolha de quase 73 milhões de eleitores; o presidente Donald Trump ultrapassou a própria marca e alcançou 69 milhões de votos. A diferença pequena entre o democrata e o republicano é evidência de que foi a polarização o combustível da participação recorde do eleitorado. Significa que, quando sair da apuração, o país estará mais dividido que nunca. E dará esse recado ao mundo.

Impressiona o engajamento a Trump numa campanha, para ficar em dois grandes temas, ancorada na inépcia de uma gestão federal que deixou os EUA, o país mais rico do mundo, serem o primeiro em mortes pela Covid-19; e na leniência do presidente da República com movimentos de supremacia branca e criminalização das manifestações antirracistas, as maiores em meio século. Em discurso na convenção democrata, transmitido do Museu da Revolução Americana, na Filadélfia, o ex-presidente Barack Obama foi direto: “O que está em jogo agora é nossa democracia”.

Democracia em risco, efeitos dramáticos da crise sanitária mais devastadora em um século, racismo confrontado. E os americanos responderam com dezenas de milhões de votos em Donald Trump. As pesquisas de boca de urna, publicadas pelo “New York Times”, sinalizaram prioridades do eleitorado: quatro em dez votantes consideram reconstruir a economia mais importante que conter o coronavírus; e, destes, 76% votaram no atual presidente. Oito em dez eleitores de Trump estão entre os americanos (26%) que consideram racismo um não problema ou questão menor.

Religião pesou enormemente nas eleições americanas: dos 27% que se autodeclaram evangélicos, 76% votaram em Trump. A afinidade dos cristãos com o Partido Republicano é imensa: 79%, segundo a Pew Research, contra 52% dos simpatizantes dos democratas. “A religião continua determinante. Esse ‘Estados Unidos profundo’, branco e cristão, não quer um país diverso e progressista. O racismo se exacerba e esse movimento não vai ‘entregar’ o país sem reagir”, avalia Ronilso Pacheco, teólogo brasileiro, pastor evangélico, mestrando da Universidade Columbia, em Nova York.

São lições do conservadorismo americano que servem ao Brasil igualmente polarizado, que nas eleições de 2018 abraçou Jair Bolsonaro, admirador declarado de Trump. Uma vitória de Joe Biden nos EUA é derrota para o presidente brasileiro, mas não interrompe o vendaval da extrema-direita que varre o mundo. Como os EUA, o Brasil também anda repartido entre retroceder ou avançar na agenda de direitos civis, caso do aborto legal, do casamento entre pessoas do mesmo sexo, da valorização da diversidade racial, do combate à intolerância religiosa para além da “cristofobia”. Fica o alerta de que a estratégia de minar a credibilidade do sistema eleitoral deve se acentuar por essas bandas.

Mas nem tudo foi retrocesso no pleito americano. E o esplendor da diversidade há que ser festejado. Nunca tantos eleitores, tão diferentes num pleito, repito. Dos 30 milhões de negros habilitados, 63% pretendiam votar. O número de hispânicos também foi recorde, 32 milhões. A heterogeneidade desse grupo nas eleições deve ser compreendida e festejada. Como os brancos em toda parte, latinos não encarnam um perfil nos EUA. Tampouco negros e negras são homogêneos no Brasil. Ensinamentos sobre diversidade, liberdade e democracia precisam ser absorvidos tanto lá quanto cá.

A geração Z, de americanos nascidos a partir de 1996, compunha um décimo das pessoas aptas a votar no país. Bateram 23 milhões de eleitores, 16 milhões a mais que quatro anos antes. O protagonismo dos jovens de todas as etnias nas manifestações antirracistas desencadeadas a partir do assassinato de George Floyd, em maio, e o interesse crescente deles por política são bons presságios. Foi por eles que a senadora Kamala Harris pode se tornar a primeira mulher negra candidata a vice-presidente dos Estados Unidos.

A mesma eleição que deu votação recorde a Trump fez de Sarah McBride a primeira senadora transgênero do país; elegeu deputada a ativista Cori Bush, líder do Black Lives Matter; reelegeu as congressistas Alexandria Ocasio-Cortez, de apenas 29 anos, e Ilhan Omar, muçulmana. O republicano Madison Cawthorn, 25 anos, foi o primeiro jovem nascido na década de 1990 a se tornar deputado. A construção da diversidade (de gênero, raça, classe, faixa etária) na política está em curso também no Brasil. Basta reparar no leque de candidatos às prefeituras e câmaras municipais. E votar.

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