Como
os EUA, o Brasil também anda repartido entre retroceder ou avançar na agenda de
direitos civis
Em
tempos de democracias ameaçadas, bom saber que, em 120 anos, nunca tantos — e
tão diferentes — eleitores votaram nos Estados Unidos do pleito facultativo. A
Universidade da Flórida estimou que pelo menos 160 milhões de pessoas
participaram da eleição presidencial. O comparecimento de dois em cada três
eleitores é o maior desde a virada do século XX, com pandemia, com tudo. Um
feito. No voto popular, Joe Biden tornou-se o candidato à Casa Branca mais
votado da História, escolha de quase 73 milhões de eleitores; o presidente
Donald Trump ultrapassou a própria marca e alcançou 69 milhões de votos. A
diferença pequena entre o democrata e o republicano é evidência de que foi a
polarização o combustível da participação recorde do eleitorado. Significa que,
quando sair da apuração, o país estará mais dividido que nunca. E dará esse
recado ao mundo.
Impressiona
o engajamento a Trump numa campanha, para ficar em dois grandes temas, ancorada
na inépcia de uma gestão federal que deixou os EUA, o país mais rico do mundo,
serem o primeiro em mortes pela Covid-19; e na leniência do presidente da
República com movimentos de supremacia branca e criminalização das
manifestações antirracistas, as maiores em meio século. Em discurso na
convenção democrata, transmitido do Museu da Revolução Americana, na
Filadélfia, o ex-presidente Barack Obama foi direto: “O que está em jogo agora
é nossa democracia”.
Democracia
em risco, efeitos dramáticos da crise sanitária mais devastadora em um século,
racismo confrontado. E os americanos responderam com dezenas de milhões de
votos em Donald Trump. As pesquisas de boca de urna, publicadas pelo “New York
Times”, sinalizaram prioridades do eleitorado: quatro em dez votantes
consideram reconstruir a economia mais importante que conter o coronavírus; e,
destes, 76% votaram no atual presidente. Oito em dez eleitores de Trump estão
entre os americanos (26%) que consideram racismo um não problema ou questão
menor.
Religião
pesou enormemente nas eleições americanas: dos 27% que se autodeclaram
evangélicos, 76% votaram em Trump. A afinidade dos cristãos com o Partido
Republicano é imensa: 79%, segundo a Pew Research, contra 52% dos simpatizantes
dos democratas. “A religião continua determinante. Esse ‘Estados Unidos
profundo’, branco e cristão, não quer um país diverso e progressista. O racismo
se exacerba e esse movimento não vai ‘entregar’ o país sem reagir”, avalia
Ronilso Pacheco, teólogo brasileiro, pastor evangélico, mestrando da
Universidade Columbia, em Nova York.
São
lições do conservadorismo americano que servem ao Brasil igualmente polarizado,
que nas eleições de 2018 abraçou Jair Bolsonaro, admirador declarado de Trump.
Uma vitória de Joe Biden nos EUA é derrota para o presidente brasileiro, mas
não interrompe o vendaval da extrema-direita que varre o mundo. Como os EUA, o
Brasil também anda repartido entre retroceder ou avançar na agenda de direitos
civis, caso do aborto legal, do casamento entre pessoas do mesmo sexo, da
valorização da diversidade racial, do combate à intolerância religiosa para
além da “cristofobia”. Fica o alerta de que a estratégia de minar a
credibilidade do sistema eleitoral deve se acentuar por essas bandas.
Mas
nem tudo foi retrocesso no pleito americano. E o esplendor da diversidade há que
ser festejado. Nunca tantos eleitores, tão diferentes num pleito, repito. Dos
30 milhões de negros habilitados, 63% pretendiam votar. O número de hispânicos
também foi recorde, 32 milhões. A heterogeneidade desse grupo nas eleições deve
ser compreendida e festejada. Como os brancos em toda parte, latinos não
encarnam um perfil nos EUA. Tampouco negros e negras são homogêneos no Brasil.
Ensinamentos sobre diversidade, liberdade e democracia precisam ser absorvidos
tanto lá quanto cá.
A
geração Z, de americanos nascidos a partir de 1996, compunha um décimo das
pessoas aptas a votar no país. Bateram 23 milhões de eleitores, 16 milhões a
mais que quatro anos antes. O protagonismo dos jovens de todas as etnias nas
manifestações antirracistas desencadeadas a partir do assassinato de George
Floyd, em maio, e o interesse crescente deles por política são bons presságios.
Foi por eles que a senadora Kamala Harris pode se tornar a primeira mulher
negra candidata a vice-presidente dos Estados Unidos.
A mesma eleição que deu votação recorde a Trump fez de Sarah McBride a primeira senadora transgênero do país; elegeu deputada a ativista Cori Bush, líder do Black Lives Matter; reelegeu as congressistas Alexandria Ocasio-Cortez, de apenas 29 anos, e Ilhan Omar, muçulmana. O republicano Madison Cawthorn, 25 anos, foi o primeiro jovem nascido na década de 1990 a se tornar deputado. A construção da diversidade (de gênero, raça, classe, faixa etária) na política está em curso também no Brasil. Basta reparar no leque de candidatos às prefeituras e câmaras municipais. E votar.
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