A
cada dia que passa, Bolsonaro mostra que não entendeu nada do que aconteceu no
Brasil nos últimos anos
O
bom governante é o que aprende com a história. Essa é uma máxima que deveria
estar na porta de entrada de todos os palácios e sedes governamentais. Tal
ensinamento se tornou ainda mais relevante com a eleição de 2018, quando venceu
a ideia de que viria algo completamente novo que substituiria a velha política.
Só que a mudança só se torna factível se a liderança política sabe o quê e como
mudar, e apenas quem tem efetivo conhecimento histórico pode realizar essa
transformação. O problema atual é que, a cada dia que passa, o presidente
Bolsonaro mostra que não entendeu nada do que aconteceu no Brasil nos últimos
anos, tanto no campo político como nas políticas públicas.
A
própria definição de Bolsonaro como novidade, tal qual apareceu na última
eleição presidencial, foi um engodo. É preciso desmistificar essa ideia, uma
vez que ele foi deputado federal por quase 30 anos e não esteve na linha de
frente de nenhuma proposta séria de transformação do país. No máximo, dizia que
o regime militar errou por não ter fuzilado mais umas 30.000 pessoas.
Quando
o país entrou numa enorme crise política e econômica, iniciada em 2013, a
sociedade começou a rejeitar o sistema partidário que fora hegemônico por pouco
mais de 20 anos, desde o impeachment de Collor. Foi aí que surgiu o espaço para
uma liderança que defendesse a mudança completa do país. O eleitorado
majoritário não olhou para o passado de Bolsonaro e acreditou que ele seria uma
ruptura positiva. O fato é que essa massa enorme de eleitores, muitos com ódio
do petismo e outros sentindo-se descontentes com as alternativas de
centro-esquerda e centro-direita, comprou gato por lebre, como se diz
popularmente. Na verdade, a melhor expressão para definir essa escolha
eleitoral é outra: quem votou em Bolsonaro comprou o velho por novo.
O
início do governo Bolsonaro foi marcado por duas tendências. De um lado,
procurou se distinguir do passado trazendo nomes que não ocuparam cargos nos
últimos governos, aparentemente abraçou o lavajatismo com a vinda de Sergio
Moro para o Ministério da Justiça, não criou uma aliança explícita com o
Congresso Nacional e os partidos tradicionais, e, como pretensa forma mais
inovadora, buscou imprimir um ritmo alucinante de discussão pelas redes
sociais, dando a impressão que governaria por meio delas.
Havia
outro lado deste modelo, entretanto. Junto com uma agenda fortemente
conservadora nos costumes, defendida com muita agressividade pelos
bolsonaristas, o presidente da República pouco a pouco foi instalando uma
agenda claramente autoritária. Uma das principais ações neste sentido foi
enfraquecer os controles democráticos impulsionados pela Constituição de 1988,
como os Conselhos de Participação Social, a Polícia Federal e o Ministério
Público, escolhendo um procurador-geral que fosse completamente vinculado às
ordens presidenciais. Este namoro de Bolsonaro com o autoritarismo teve seu
auge em meio à pandemia, com ameaças aos outros Poderes e manifestações
antidemocráticas comandadas por seus apoiadores.
A
história não se repetiu nem como uma farsa nem como tragédia. Bolsonaro não
percebeu que o país - e o mundo - estavam num ano diferente de 1964. A prisão
de Fabrício Queiroz ligou o despertador para o presidente e ele, ainda bem,
mudou de rumo. Os grupos de extrema-direita perderam força no governo, mas não
foram desalojados por completo da aliança governista. De tempos em tempos,
Bolsonaro abraça causas malucas e radicais, como no debate sobre a vacina,
piscando para os autoritários de plantão.
A
ambiguidade entre a democracia e o autoritarismo não acabou por completo, mas
Bolsonaro optou por fazer um compromisso com a classe política, o que foi um
alento para a governabilidade do país. O presidente finalmente descobriu que os
parlamentares tinham tanta legitimidade quanto ele. Podia se abrir um novo
capítulo, que garantisse estabilidade democrática e gerasse a aprovação de
medidas importantes para a economia e a sociedade.
O
problema é que o condomínio político montado junto ao Centrão se orienta apenas
por uma perspectiva defensiva de governabilidade. Trocando em miúdos, esse casamento
tem como objetivo básico salvar todos os sócios de qualquer pendência judicial
- inclusive (ou principalmente) as relacionadas aos filhos do presidente. Vez
ou outra surge uma afinidade ideológica ou o interesse em algum tema estrutural
nessa aliança do Executivo federal com esse grupo parlamentar, mas, no geral,
esse novo casal tem sido incapaz de gerar uma agenda sólida de propostas
legislativas.
Se
quiser dar maior efetividade a essa aliança, Bolsonaro tem de estudar mais a
história recente. Claro que é preciso montar uma coalizão parlamentar para
governar um sistema político marcado pelo multipartidarismo. Mas o
presidencialismo de coalizão vai além disso. Para obter sucesso neste modelo,
faltou ao bolsonarismo aprender três lições derivadas de outros governos: é
necessário ter agenda clara, coordenação política e construir políticas
públicas consistentes, capazes de gerar mais do que uma popularidade
momentânea.
Uma
aliança parlamentar só resulta em governabilidade efetiva caso tenha uma agenda
que a oriente. Os bolsonaristas podem dizer que mandaram vários projetos ao
Congresso Nacional, alguns de reconhecida relevância. Mas está claro que não há
prioridades bem definidas nesta inflação de PECs e leis enviadas ao
Legislativo. Na verdade, o próprio presidente da República não saberia dizer o
que é mais importante, a reforma tributária ou a administrativa, alterar o
pacto federativo ou a legislação penal. Bolsonaro, no fundo, não quer comprar
briga com ninguém, não deseja apoiar nada que o indisponha com parcelas do
eleitorado. Prefere comemorar a aprovação do Código Nacional de Trânsito e
falar de medidas vinculadas à pauta dos valores, embora tais temáticas não
tirem os cidadãos brasileiros do atual buraco econômico e social.
Falta
ao Executivo federal, ademais, maior coordenação interna e externa. A briga
entre os vários lados do governo é constante, com um grau de publicidade
inédito. O presidente não tem sido capaz de acabar com essa balbúrdia. Quando
arbitra, é para tomar decisões movidas pelo fígado e pelo desejo de eliminar os
concorrentes eleitorais. As relações com o Congresso também são caóticas. A
pauta das duas Casas mexe-se lentamente e muitas vezes contra os interesses do
governo. Bolsonaro provavelmente não aprovará nenhum sucessor do auxílio
emergencial e, o pior de tudo, as eleições de fevereiro para Câmara e o Senado
continuam em aberto, gerando enorme incerteza para os dois anos finais do
mandato.
O
presidencialismo de coalizão, por fim, precisa se ancorar num caminho claro de
políticas públicas. A popularidade inesperada cegou Bolsonaro, que botou o
carro na frente dos bois: ele já está em campanha para a reeleição sem
construir o que vai mostrar. E é exatamente no campo das políticas públicas que
o presidente da República menos aprendeu com a história recente.
Primeiro,
Bolsonaro não entendeu que cortes muito abruptos não dão certo. Fez mudanças em
políticas públicas sem saber o que estava dando certo e o que estava no rumo
errado, e jogou o governo no escuro. Como consequência, a maioria dos setores
não entregará bons resultados até 2022 - a principal exceção, a área de
infraestrutura, é a de maior continuidade em relação ao passado recente.
Também
faltou colocar gente competente nos postos-chave, profissionais que entendam
dos assuntos pelos quais são responsáveis. Este é um dos governos com mais
gente amadora na história brasileira. Soma-se a isso o fato de que é necessário
dialogar com os atores vinculados às políticas públicas, porque a interdição da
conversa ou, pior, uma agenda completamente contrária a quem historicamente
está ligado a uma área não produz uma mudança bem-sucedida. Se alguém tiver
dúvida disso, acompanhe o que está acontecendo na Cultura, na Educação e na
Saúde. É uma coleção de desastres.
A
lógica do conflito, quando não da briga de rua, alimenta boa parte da dinâmica
das políticas públicas bolsonaristas. A desarticulação federativa tem
atrapalhado muito as políticas sociais. Menos Brasília não é, necessariamente,
melhor Brasil, muito menos governo federal bem avaliado - vide as eleições nas
capitais, majoritariamente antibolosonaristas. Bolsonaro não percebeu que é
preciso fazer compromissos institucionais e políticos inclusive com adversários
para apresentar resultados. Em vez disso, a maneira bélica de agir tem se
espalhado até na Esplanada, gerando falsas dicotomias em seu governo, como a
volta da luta entre ministros gastadores e fiscalistas. Nesta disputa, quem
perde é o país e o presidente da República.
Ao
repetir erros do passado e não aprender com os acertos, o governo Bolsonaro
fica velho antes do tempo. Esse fracasso bolsonarista não quer dizer que o país
não precise de lideranças e ideias novas. Renovação é fundamental para combater
os problemas estruturais e colocar o Brasil novamente nos trilhos. Mas os que
portarem a mudança em 2022 só terão sucesso se conhecerem bem a história e
souberem utilizá-la a seu favor.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getúlio Vargas
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