O
empenho do governador de SP em revogar conquistas emblemáticas dos cientistas e
dos educadores mostra que ele toma o partido dos inimigos de São Paulo e do
Brasil modernos
O
governador João Doria (PSDB) insiste em propor à Assembleia Legislativa medidas
que afetam o orçamento e talham recursos vitais da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e, também, das três universidades
estaduais paulistas - USP, Unesp e Unicamp. A vulnerabilidade do Legislativo
aumenta o risco.
Ele
se ilude e claramente é iludido por orientadores que lhe dizem que os saldos
não utilizados por essas instituições são dinheiro sobrando. Isso é completo
desconhecimento do que é o período de referência da ciência e da formação de
cientistas e educadores.
O
ano de referência desses dispêndios não é o ano civil, a não ser nominalmente.
É o período dos compromissos assumidos com projetos de pesquisa e bolsas de
estudos para formação de novos pesquisadores. Normalmente, o período é de
vários anos.
A
verba contratada com a instituição de pesquisa que dela precisa e com o
pesquisador ou bolsista tem que ficar assegurada desde a contratação. O lúcido
governador Carvalho Pinto (1910-1987), que criou a Fapesp, já incluíra na lei
respectiva a disposição de que as sobras constituem parte integrante dos seus
recursos.
Esse
dinheiro é aplicado, e seus rendimentos são incorporados ao orçamento como
verba própria. Especialmente num período como este, de crise financeira, esse
recurso supre em parte os recursos que a crise sonega.
O
empenho do governador em revogar por implicação conquistas emblemáticas dos
cientistas e dos educadores mostra que, em nossa guerra contra o atraso, ele
toma o partido dos inimigos de São Paulo e do Brasil modernos e prósperos. Ele
não está do lado da ciência, nem está do lado da inteligência e do país e do
Estado que delas depende.
Ele
toma o partido do atraso que nos oprime, da modernidade de fachada. Ele faz de
conta que não sabe o que é e como é a formação de um cientista, como os que
temos, formação que leva pelo menos nove anos de estudos formativos, cuja
atualização contínua lhe tomará o restante da vida acadêmica. O que só será
possível com recursos para pesquisa e para ensino, para formar novos cientistas
que deem continuidade ao conhecimento que é hoje essencial para manter a vida.
A
revolução agrícola e pecuária ocorrida em São Paulo no último meio século muito
deve à Fapesp e às universidades. Pode-se dizer o mesmo em relação à indústria.
O que o próprio governador come todos os dias e comem seus secretários e os
deputados que, nisso, com ele se alinham vem da pesquisa científica, em
primeiro lugar. O que vestem também. E também o conhecimento médico e
científico que lhes alivia as dores e lhes prolonga a vida. Para quem governa,
não sabê-lo é muito desconhecimento.
Três
grandes episódios na história do Brasil deram início e bases para que o país
deixasse de ser um país mínimo, dependente da agricultura de exportação e de
suas crises cíclicas. Foram a criação da Universidade de São Paulo, em 1934,
pelo governador Armando de Salles Oliveira (1887-1945), concepção do jornalista
Júlio de Mesquita Filho (1892-1969), inspirado numa visão pluralista e
humanista do conhecimento e da ciência.
A
criação, em janeiro de 1951, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq), agregado à Presidência da República pelo presidente
Getúlio Vargas (1882-1954) para evitar as manipulações e distorções da política
oligárquica e clientelista que insistia em manter o Brasil como um paraíso do
atraso. Foi, em boa parte, inspiração do almirante Álvaro Alberto da Motta e
Silva (1889-1976), físico e engenheiro, dedicado à pesquisa sobre a energia
nuclear.
E,
finalmente, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp),
prevista no artigo 123 da Constituição Estadual de 1947. Foi criada em 1960 por
lei sancionada pelo governador Carvalho Pinto (1910-1987), marcada por
dispositivos que lhe assegurassem recursos para concretizar seus objetivos com
autonomia e segurança.
São
três episódios de uma grande revolução cultural, social, econômica e política
que habilitaram o país a vencer o atraso crônico herdado do latifúndio
exportador, escravista e apoiado em relações retrógradas de trabalho e do
Estado clientelista.
Foram
aquilo que Henri Lefebvre (1901-1991) define como insurreição dos resíduos,
daquilo e daqueles que não haviam sido capturados e instrumentalizados pelos
agentes e pelas instituições do atraso social e político. Ilhas de civilidade,
de saber e de criatividade de um Brasil moderno, paralelo, infiltrado
corrosivamente no Brasil atrasado.
Um
sonho responsável que nos vem desde José Bonifácio de Andrade e Silva
(1763-1838), cientista e geólogo, que foi secretário da Real Academia de
Ciências. Com iniciativas como as de Doria e de seu êmulo, Jair Messias, o
legado do Patriarca da Independência se extingue.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).
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