Neste
mundo kafkaniano, Donald Trump não é um Gregor Samsa solitário
Na
noite eleitoral de 2016, muitos norte-americanos foram dormir sonhando com uma
mulher na presidência. Despertaram de um sonho intranquilo, com o presidente
metamorfoseado num Trump gigantesco. Quem achava que este 3 de novembro daria
fim ao pesadelo, entrou em insônia prolongada.
E,
em vez de sediar a ansiada marcha dos civilizados sobre os bárbaros, a quarta
foi de cinzas, entre festa e ressaca. Na quinta, Biden, tudo indica, venceu;
mudará a configuração política do planeta. Não é pouco. Mas foi por pouco.
Governará no meio a meio, Câmara e Senado partidos, Suprema Corte adversa.
As
urnas atestaram o tamanho do apoio à pessoa, aos valores e às atitudes do
presidente. Depois de quatro anos sob sua égide, o inaceitável para a metade
azul soou bom o bastante para a vermelha. Trump perdeu a rodada, mas o
conservadorismo ostentou seu enraizamento.
A
derrota é tranco para adeptos do "make my country great again" mundo
afora, mas não é antídoto que reponha o Ocidente no jazz de Clinton-Blair.
Embora Trump fosse sua face mais vistosa, uma rede internacional de extrema
direita se desenvolve desde a valsa Reagan-Thatcher.
A
internet está infestada com suas publicações, campanhas, movimentos. Há
conspiratórios e patéticos, mas não faltam os astutos. Santiago Abascal é desta
espécie. Embora trumpistas de carteirinha em momento barata tonta, os
Bolsonaros não ficarão no desamparo. Como são bons em diversificar
investimentos, já tinham incluído o líder do Vox em sua carteira.
Quem
cuida da bolsa internacional da família é o 03. Depois de se enlaçar com os
reacionários norte-americanos e organizar convenção internacional conservadora,
aproximou-se da extrema direita espanhola. Em junho, Eduardo entrevistou
Abascal no YouTube. Gentilezas de lado a lado, o espanhol se excedeu: elogiou o
domínio do castelhano pelo brasileiro.
Em
cinco anos, o Vox virou o terceiro partido no país. Segundo Eduardo,
Abascal segue "el mismo camino exacto" de seu pai. De fato, embora
mais elegante e informado que a família presidencial brasileira, compartilha a
autodefinição como "patriota" e a imodéstia na avaliação do próprio
peso.
Em
entrevista, no fecho das eleições que fizeram do partido andaluz força
incontornável, foi categórico: o Vox mudou o debate na Espanha. Como Trump e
Bolsonaro, quebrou a cerca do politicamente correto: "O marxismo cultural
tinha decretado quais eram os debates proibidos, diziam do que se podia e do
que não se podia falar". Agora a agenda pública se disputa.
Abascal
projeta a sua globalmente. Criou a Fundación Disenso e, mês passado, o
"Foro de Madrid", para "frear o avanço comunista", o aborto
e a "ideologia de gênero". Arregimentou para sua "Carta de
Madrid" 17 líderes de direita de 15 países, entre gente de governos,
partidos, think tanks, proselitistas, jornalistas e empresários, muitos na casa
dos 40 e 50 anos. Trata-se de nova e aguerrida geração de conservadores.
A
carta denuncia o "sequestro" de parte da "iberoamérica" por
"regimes totalitários de inspiração comunista, apoiados pelo
narcotráfico", que, liderados por Cuba, Foro de São Paulo e Grupo de
Puebla, imporiam seu "projeto ideológico e criminoso" de
"desestabilizar as democracias liberais."
*Angela
Alonso, professora
de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento
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