sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Míriam Leitão - Tempo suspenso e a democracia

- O Globo

O tempo parou nos Estados Unidos. O tempo parou no mundo. Por quase dois dias, intermináveis horas, os ponteiros marcando o número de votos dos candidatos ficaram congelados em 253 e 214, enquanto a apuração seguia em câmera lenta em cinco decisivos estados. Foi impossível não ser capturado por esse cipoal de regras estaduais, de tendências políticas de condados, do debate sobre os votos pelo correio ou presenciais. Toda eleição americana atrai atenção, esta parece ser uma decisão sobre o fim do mundo. A mais consequential eleição do nosso tempo, como definiu a revista “Economist”. O que a torna tão dramática atende pelo nome de Donald Trump.

Trump está disposto a ser até o fim um perigo para a democracia americana. Num discurso patético e criminoso, disse que a eleição está sendo roubada e que vai à Suprema Corte. Ele escalou a guerra jurídica, aumentou o tom das acusações de fraudes, sem qualquer evidência, continuou corroendo a credibilidade das instituições junto aos seus eleitores. Quanto mais o candidato democrata Joe Biden foi ampliando suas chances, mais Trump elevava sua reação, dando trabalho ao Twitter de ir retirando seus conteúdos com a explicação de que eles desinformavam sobre a eleição e o processo cívico. Quando alguém poderia imaginar uma rede social tendo que eliminar conteúdo de um presidente dos Estados Unidos por ele estar atacando o processo cívico de uma eleição?

As principais lideranças republicanas ficaram em silêncio. A má notícia é que não discordaram de Trump, a boa é que não fizeram coro com as suas alegações de fraude. O que é um sinal antecipado do que acontecerá quando ele sair da Casa Branca dentro de 75 dias. O poder que o aparato da presidência americana dá ao titular do salão oval é enorme, mas se esvai instantaneamente. Aos seus ex-ocupantes concede apenas influência e prestígio e na medida dos seus méritos.

O sistema do colégio eleitoral é obviamente disfuncional. As regras, criadas num tempo de representação limitada, teriam a virtude de impedir outsiders, segundo seus defensores. Desta forma, a democracia americana continuaria no seu movimento pendular entre os dois grandes partidos, blindado contra aventureiros. Ninguém mais pode dizer isso depois de Donald Trump, que despencou de um reality show de má qualidade direto para a Casa Branca. Nos últimos quatro anos atentou diariamente contra as bases da democracia americana, misturou os interesses e bens públicos com seus negócios privados, quebrou todas as regras de conduta que um chefe de Estado de país democrático deve seguir. Mentiu de maneira tão compulsiva e doentia que sua presidência não pode ser entendida pelos manuais de ciência política, mas sim pelos tratados de medicina ou por códigos penais.

Por isso, as falas de Joe Biden dão uma sensação de alívio. Elas são normais. Ontem, ele disse que o voto é sagrado, que todos precisam ser contados, que através do voto as pessoas expressam sua vontade. “É a vontade dos eleitores, e de ninguém mais, que escolhe o presidente dos Estados Unidos.” Biden é desprovido de carisma. Não tem o apelo magnético de um Barack Obama. Mas depois dessa tempestade de dissonâncias que tem sido a presidência Trump, seu tom monocórdico soa como uma harmonia.

Enquanto os votos eram contados numa lentidão enervante, o mundo teve que se informar sobre cada particularidade da geografia americana. Omaha, o condado de Nebraska dono de um voto, entrou no mapa da imprensa de vários países. Nevada parecia o centro do mundo na noite de quarta-feira, mas aí o estado decidiu suspender a contagem e ir dormir com os seus seis votos parados no ar. Na quinta de manhã, houve o “dilema no deserto”, segundo escreveu o “Financial Times”, na explicação sobre os 11 votos do Arizona que entraram e saíram da conta. No começo da tarde, Geórgia estava em todas as mentes. No fim do dia todas as calculadoras voltaram-se para o ponto inicial da República nascida das 13 colônias: Pensilvânia e seus 20 votos que teriam o poder de encerrar a longa agonia. Nunca a expressão “cada voto conta” fez tanto sentido. Foi assim que o planeta passou as horas paradas desta semana, enquanto se decidia o futuro da democracia.

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