Mais
poder para quê? Para confrontos e mobilização com ‘seu’ exército? Não haverá!
Entre
os motivos por que alertava para não se votar em Bolsonaro, eu ressaltava,
nesta página de outubro de 2018, ser o candidato pessoa que não tivera ao longo
da vida relações sociais ou políticas, sendo um outsider, sem densidade e
compreensão da pluralidade própria do nosso mundo e para quem o Brasil, na sua
complexidade, era visto como um quartel.
No
quartel não há dissidentes ou debate livre entre membros de escalões
diferentes, pois, como ensina o Manual de Campanha – Ordem Unida do
Exército, 4.ª edição, 2019, as principais características de uma instituição
militar são a disciplina e a coesão, entendida a disciplina como o predomínio
da ordem e da obediência, sendo esta pronta, espontânea e entusiástica.
Bolsonaro, formatado na ordem unida, transformou o Ministério da Saúde num quartel, com ministro general e secretário executivo coronel, imperando o que haviam aprendido na caserna: disciplina, ou seja, um manda e o outro obedece às ordens superiores, com submissão cega às determinações do presidente Bolsonaro. Conclusão: nem no prédio do ministério se usavam máscaras.
Enquanto
o presidente brincava de “marcha soldado”, milhares de brasileiros morriam. Mas
quando chegou a três centenas de milhar, as elites políticas e econômicas
resolveram dar um basta à brincadeira.
O
repertório de encenações do pretenso mito está a se esgotar. Deu, então, uma
cambalhota no palco presidencial para reafirmar sua autoridade. Tosco no plano
político, sem traquejo na montagem de negociação, que presume ter-se fim
preciso a ser alcançado e meios a serem negociados para chegar à meta,
Bolsonaro imaginou que, abandonando seus correligionários originais e se unindo
ao Centrão, estava garantido no poder para o que desse e viesse.
Como
o aprendiz de feiticeiro, Bolsonaro desencadeou forças sobre as quais pensou
ter controle, mas que o dominam. Como só conhece as regras da ordem unida, e
não a arte da mudança de rumos e da aceitação de uma pluralidade de soluções,
imaginou que teria à frente da Câmara e no Senado, em razão de seu apoio, dois
outros Pazuellos.
Bolsonaro
é presidente, mas sente que não mais governa, só administra crises e corre
atrás do prejuízo. Diante do desastre sanitário gigantesco, o Centrão resolveu
intervir no governo. Forçado pelos dirigentes das Casas do Congresso, Bolsonaro
demitiu o ministro da Saúde, mas não seguiu a orientação de nomear médica de
São Paulo, para desgosto em especial de Arthur Lira, que chegou a dizer serem
os remédios do Parlamento amargos, podendo mesmo ser fatais.
Bolsonaro,
em vista dessa pressão decorrente do número de mortos e do desespero da
situação hospitalar, resolveu convocar os chefes dos Poderes para possível
pacto, deixando, contudo, de convidar governadores, prefeitos e secretários da
Saúde, contra os quais se voltou em posterior reunião do comitê, para culpá-los
pelo desemprego decorrente das sabidamente necessárias medidas restritivas. O
presidente do Senado, ao contrário, reuniu-se com governadores e deles recebeu
várias sugestões.
Há
evidente parlamentarismo branco. Os presidentes da Câmara e do Senado impuseram
a saída do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, cuja gestão fora
desastrosa para o Itamaraty. Araújo pediu demissão, apesar de já demitido por
Rodrigo Pacheco e Arthur Lira.
Tendo-se
feito de surdos-mudos em meio à tormenta, na resistência, própria das vítimas
de estelionato, a se reconhecerem enganadas, como o foram, por Bolsonaro, os
agentes econômicos (Fiesp e Febraban) finalmente resolveram se juntar aos
presidentes da Câmara e do Senado e tomar posição em face do presidente.
Formou-se, então, um conjunto consistente de pressão sobre o governo.
Em
reação, o presidente demitiu o Ministro da Defesa, que preservara as Forças
Armadas como instituição de Estado, merecendo por isso o apoio dos comandantes
das três Armas. No campo militar e nos ministérios da área jurídica, Bolsonaro
tenta criar nichos de obediência, com ministros próximos à família, serviçais
como Pazuello, a permitir-lhe até mesmo o devaneio do estado de sítio e de se
afirmar como presidente.
A
esquizofrenia se faz presente no governo: de um lado, caudatário do Centrão,
entrega a Secretaria de Governo para inexpressiva deputada gerenciar emendas e
cargos; de outro, temeroso da ingerência do Centrão, reforça com amigos a linha
repressiva: delegado ligado à bancada da bala no Ministério da Justiça, o
disciplinado André Mendonça na AGU e Braga Netto na Defesa. Com tal time e a
possível mobilização de polícias militares pelo governo federal, concretiza-se
o risco de caminho antidemocrático.
Pouca
preocupação há em dotar o governo de capacidade gerencial ante a pandemia e a
crise econômica que se avizinha: o que se quer é poder. E assim o aprendiz de
feiticeiro tenta novos contorcionismos visando a sobrenadar no mar dos seus
desatinos. Mas mais poder para quê? Para confrontos e mobilização nacional com
o “seu” exército? Não haverá!
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
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