Comandantes
deram um ‘não’ a Bolsonaro, batendo continência à Constituição
A
história pode ser contada a partir de uma quinta 12, em novembro do ano
passado, quando o
comandante do Exército, general Edson Pujol, disse em palestra que os militares
da ativa devem ficar fora da política. Na sequência, o ministro da
Defesa, general Fernando Azevedo, divulgou nota coassinada pelos três
comandantes militares reafirmando as palavras de Pujol, mas ressalvando que
elas não destoavam “do entendimento do presidente da República”. A demissão
coletiva dos comandantes, dias atrás, impugna o intento de uma conciliação
impossível.
Os eventos do final de 2020 são marcos secundários numa história mais antiga que deve ser narrada a partir de agosto de 2015, quando uma chusma de apoiadores do então deputado Jair Bolsonaro montou acampamento diante do Comando Militar do Sudeste, em São Paulo, para pedir “intervenção militar constitucional”. Na época, o general Villas Bôas, então comandante do Exército, que trafegava diante das barracas do autointitulado Posto Revolucionário 1 no trajeto para sua residência, ironizou a demanda: “Quero entender como se faz”. Nos anos seguintes, a ironia secou, dando lugar à aventura da adesão de um grupo de generais à candidatura de Bolsonaro.
A
separação entre a política e os quartéis nunca fez sentido para Bolsonaro. O
capitão desordeiro, excluído do Exército, fez carreira política baseada no
elogio do regime militar e organizou sua candidatura presidencial em torno da
ideia do fracasso da democracia. No Planalto, estimulou a anarquia militar,
chegando a patrocinar um ato subversivo diante do Quartel-General do Exército,
em Brasília, e alimentando
um projeto de intimidação do Congresso e do STF. O Plano A do
presidente jamais foi a reeleição.
Fernando
Azevedo produziu, na sua carta de demissão, um sintético
manifesto antibolsonarista: “Preservei as Forças Armadas como instituições de
Estado”. As coisas, porém, só chegaram ao ponto da ruptura por culpa de três
generais que esqueceram as lições aprendidas por duas gerações de altos
oficiais militares.
O
vírus da anarquia militar, traço estrutural das repúblicas caudilhescas
latino-americanas, chegou ao Brasil com atraso, mas deitou fundas raízes, pontilhando
nosso século 20 com pronunciamentos, levantes e golpes. A era da
anarquia durou até o outono da ditadura, quando as cúpulas das Forças Armadas
começaram a erguer uma muralha entre os militares e a política.
A
Constituição é a única ordem legítima —o novo lema, repetido à exaustão,
restaurou a imagem dos homens em uniforme e estabilizou o sistema democrático.
Contudo, diante do colapso do governo Dilma Rousseff, três icônicos generais
lideraram uma volta ao passado. Villas Bôas
articulou a célebre nota destinada a intimidar o STF. Hamilton
Mourão aceitou a candidatura à Vice-Presidência. Augusto
Heleno ingressou no governo Bolsonaro, levando com ele uma coleção
de altos oficiais. A crise militar em curso é o fruto inevitável daquelas
decisões insanas.
Os
três generais não sabiam o que faziam. O projeto deles era dirigir o leme de um
governo conservador, ordeiro, eficaz, responsável, livre da corrupção política
que envenenou a Nova República.
Seria,
imaginaram, a validação histórica do golpe de 1964 e, portanto, a remoção
definitiva de uma mancha de desonra. A realidade, porém, dissolveu tais
ilusões: os 6.000
militares, da reserva e da ativa, que ocupam cargos no governo oferecem amparo
tácito ao presidente-agitador empenhado na quimera da
“intervenção militar constitucional”.
Disciplina e obediência são valores supremos no manual de conduta das Forças Armadas. Ironicamente, para fortuna dos militares que aderiram a Bolsonaro, os comandantes da ativa optaram pela disciplina da desobediência. Diante da encruzilhada, disseram “não” ao comandante-em-chefe, batendo continência à Constituição.
Nenhum comentário:
Postar um comentário