Golbery
do Couto e Silva, militar e político que costurou por dentro o fim do regime
militar e a volta da democracia, dizia que “no Mato Grosso tem um Napoleão”. O
brasileiro Roberto Mangabeira Unger, mais jovem professor titular da
Universidade Harvard, voltou de uma viagem pelo interior do Brasil relatando
ter visto vendendo doces nas cidades ribeirinhas do Amazonas “uma porção de
Benjamins Franklins”.
Cada a um, a sua maneira, apontou o fato óbvio, mas esquecido, de que, como queriam Machado de Assis e o poeta inglês William Wordsworth, “o menino é o pai do homem”. Toda criança anônima, pobre, deserdada da sorte, guarda dentro de si a semente de um grande homem ou de uma grande mulher. Basta que a loteria da vida lhe dê as condições para que floresça.
A
imagem do pária que se torna um herói me veio à mente ao ler talvez a única boa
notícia recente sobre a epidemia de Covid-19 que assola o planeta. Ugur Sahin,
CEO da BioNTech, parceira da Pfizer na criação da única vacina universalmente
aceita contra o vírus causador da doença, disse que até agosto deste ano toda a
Europa Ocidental estará completamente imunizada.
Ugur,
para quem perdeu esse detalhe no noticiário, chegou ainda menino à Alemanha com
sua família de imigrantes turcos. Estudou em escolas públicas, frequentou a
Universidade de Colônia, tornou-se um cientista. Casou-se com Özlem Türeci,
também pesquisadora. O casal fundou a hoje bilionária BioNTech.
Um
casal de origem turca na Alemanha salva a Europa da pandemia. É uma história
comovente e cheia de lições para um continente que ainda não resolveu
totalmente sua política de integração com as minorias aflitas que dão a suas
praias todos os dias em busca da esperança de uma vida mais plena. Os pequenos
e anônimos párias turcos traziam dentro de si as sementes do grande homem e da
grande mulher que a Alemanha, sociedade aberta, democrática, baseada na
economia de mercado, soube fazer germinar.
Com
a exceção dos períodos de patologia social grave, como o nazismo, não são tão
raras assim as histórias de sucesso de integrantes das minorias que ascenderam
fulgurantemente na Europa. A mais extraordinária que eu conheço é a do filósofo
Moses Mendelssohn (1729-1786), avô do compositor Felix Mendelssohn. Vindo de
Dessau, onde nasceu, o adolescente Moses, gago, corcunda, pobre, entrou na
cidade fortificada de Berlim pelo Portão Rosenthal, reservado ao gado —e para
judeus que aceitassem pagar imposto de gado sobre o próprio corpo. Em 15 anos,
Moses estava rico, tinha se tornado um filósofo brilhante e original,
confidente dos poderosos da política e da economia, considerado por cristãos e
judeus o “Sócrates da Alemanha”.
As
sociedades que deixam pelo menos frestas abertas aos párias, às minorias, aos
imigrantes pobres estão se dando chances espetaculares de redenção material,
espiritual, econômica e científica. É por essas portas que entram gente como
Mendelssohn, Ugur e Özlem. Foi por uma dessas portas que a professora nascida
na Hungria Katalin Karikó entrou para a alta ciência, para história da luta
contra o câncer e a Covid-19 — e, a depender, da avaliação unânime de seus pares,
muito em breve, para o seleto clube dos ganhadores do Prêmio Nobel.
Tanto a vacina da Moderna quanto a do consórcio BioNTech-Pfizer se devem às pesquisas básicas da professora Katalin Karikó, primeiro em sua “alma mater”, a Universidade de Szeged e, depois de 1985, na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, país para o qual emigrou de sua Hungria natal. Suas pesquisas demonstraram que a resposta antiviral do mRNA, o “RNA mensageiro”, cujo papel é crucial na reprodução celular, dá às vacinas uma potência extra no ataque tanto a tumores quanto ao vírus causador da Covid-19. Fique de olho, dentro de uma criança tentando vender um doce caseiro na rua pode ter um Napoleão, um Ben Franklin, um Mendelssohn, um Ugur, uma Özlem ou uma Katalin.
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